24.1.20

Trago o dia perto de mim


Ty Segall, “Alta” (live on KCWR), in https://www.youtube.com/watch?v=wMvLTM1YZBs
O apogeu da tarde, quando é?
Tomo este pulsar como o barómetro do mundo. Dele peço emprestada a vivaz luminosidade que não se esbate, nem quando o entardecer consome o dia sobrante. Faço cálculos: quantos minutos sobram do dia, de quantos posso ser a bandeira desfraldada, a bandeira que não quer ser hasteada?
O caderno gasto guarda as anotações avulsas. Os pensamentos que afloram na voracidade do instante e que possivelmente se diluem na sua pusilânime inverdade. Das palavras, umas ricas e outras não, uma obra feita que não passa sob o crivo de olhos outros. Confesso-me: “não é preciso.” Ficam os verbos sem veludo, uma crina por onde se amaciam as palavras merecidas.
Imagino outras latitudes. O caminho que é preciso fazer até lá chegar. As muitas paisagens visitadas, antes de a essas latitudes aportar. Não corro o risco do desengano: as paisagens entrecortadas pela pressa da viagem são a maior recompensa. E nem os olhos marejados, por tanto ser o vento que os agride, capitulam no emoldurar de fragmentos dos lugares demandados antes de atingir o lugar escolhido para visitar. O apogeu foi antes de chegar.
É em este perorar que campeia o tempo. Podiam ser devaneios, estéreis como se convencionou serem os devaneios. Não concordo. Sei que se metesse as mãos nas funduras da terra amanheceria imensamente mais rico. O dia seguinte teria uma fortuna inteira a adejar-me, uma fortuna sem matéria, fortuna em que as mãos ainda sujas pelo arrematar do húmus não conseguiriam tocar. Repito as palavras mais cerimoniosas de todas: “não é preciso. Não importa.” Apraz-me ser curador de um processo que contém manuais inteiros de aprendizagem. Da aprendizagem incessante.
Digo: “trago o dia perto de mim.” Se me desafiassem, não temia entrar num concurso em que se medissem os quilos de força corpórea colocados no abraçar do dia. Não me demovo, nem quando um dos meus hemisférios me sobressalta, sintetizando a acusação interior: “não são poucos os dias em que desaproveitas a sua serventia. Pareces perdê-los entre os dedos, naufragando na levada onde te desencaminham os vultos estranhos.” Mesmo assim, decretei, em papiro solene e em proveito próprio, que sou tutor do dia que trago ao regaço, dos dias que me apetecer e dos que não me apetecer. 
Não é o dia que me transporta numa transumância baça. É o contrário. O crescer da alma não se esconde nos primeiros trovões. Faço as revisões necessárias, as mudanças. Contemplo os dias que são bons e distingo-os dos que são teimosamente maus. Como se fosse um jogo e à minha vontade atribuísse um crédito inviolável. O crédito de ser a vontade a moldar o dia, e não o contrário.

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