6.1.20

Coisas concretas


Cowboy Junkies, “Sweet Jane”, in https://www.youtube.com/watch?v=Fa9nN3G2CSg
I
Um minarete irrompe do nada, quebrando o silêncio da alvorada. Os fiéis respondem ao chamamento. Saem para a mesquita, substituindo-se ao silêncio que dominava a cidade.
II
A pistola abandonada no banco do jardim parece um cadáver de si mesmo. Os dois meninos, acabados de sair da escola, encontram a pistola. Não se perguntam quantos cadáveres terá feito a pistola. 
III
Serão as sombras do entardecer a imagem de um vulto que é o fingimento de alguém que quer ser tutor do anonimato?
IV
Havia uma brisa, uma leve brisa, que não descompunha a manhã. O mar ressentia-se. As ondas cresciam com a ajuda da brisa, possivelmente localizada mesmo antes da rebentação. Depois de quebradas, as ondas davam lugar a um mar que se alojava na primeira areia.
V
Ela desafiava: “contrapõe. Quero a tua oposição à minha ideia.” Ele não sabia o que dizer. Parecia sitiado num silêncio que não sabia derrotar. Disse: “considera anuência o meu silêncio.”
VI
Algures entre o rio e os contrafortes da serrania, o arvoredo atuava como fronteira. Ou como transição entre dois ecossistemas diferentes. Esse era o logro. As diferenças não precisam de transição.
VII
Possivelmente, a miragem não era uma miragem. Seria uma imagem virada do avesso e sonhada por fora, com as paredes baças a servirem de palco.
VIII
Quais são os atributos de uma pessoa boa? Não conseguia responder. Não sabia identificar uma pessoa boa.
IX
Pensava na morte. No pós-morte, quando (dizem as convenções) somos todos matéria inerte e não conseguimos ser espectadores do próprio decesso. Afinal, não valia a pena pensar na morte.
X
Um duodécimo da paciência anual, era tudo o que dizia precisar para não ser vítima de si mesmo. Nunca soubera congeminar se não a impaciência. A insensatez era a argamassa do resto.
XI
Os pequenos gatos – quatro, a ninhada inteira – espreitavam entre as ruínas que foram a sua maternidade. Entreolhavam tudo com desconfiança. Era a metáfora do mundo obnóxio, que é este.
XII
De dia, arrastava o seu corpo poltrão. À noite dinamitava a força interior em doses maciças de boémia. Sempre soubera que estava predestinado para viver em contramão. 

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