28.1.20

O direito a errar e a não ser julgado pelos erros


Goldfrapp, “Pilots (on a Star), in https://www.youtube.com/watch?v=ydNbuB6PLiU
(Instruções de leitura: texto provavelmente ácido)
É aquele anexim tão inspirado na moral judaico-cristã: que bata no peito quem nunca se achou transviado. Ou, por outras palavras: que os diligentes censores da atividade alheia não sejam apanhados em contramão e sem o cinto de segurança devidamente apertado. Talvez devesse ocorrer que as palavras deviam ser pensadas antes do tempo, para não se esvaírem em internas contradições antes de sentarem os outros no banco dos réus e, de sua altiva condição, os sentenciarem pelos erros cometidos em tempo pretérito.
Pudessem os arquitetos legais dos direitos fundamentais ter uma costela de filósofo para desaprovarem a intrusão dos censores alheios na esfera dos erros que não são seus. Os legiferantes deviam verter nos códigos, em cláusula autónoma e com devido destaque: “cada indivíduo tem direito ao erro pessoal e a não ser julgado pelos erros cometidos.” Depois, instruções deviam ser transmitidas, desde os bancos da escola e para os alunos ainda de tenra idade, para a interiorização deste direito fundamental. Com a ajuda de filósofos, para aprenderem o princípio fundamental, frequentemente esquecido nos dias que correm, da inversão de papeis. 
As crianças seriam conduzidas por um processo voluntário no qual seriam convidadas a colocar-se no papel de outro. Para que mais tarde não fiquem vulneráveis ao delito de comportamento de serem juízes dos erros dos outros. Esta é uma tremenda vulnerabilidade. Pois ninguém, batendo no peito (se lhes der jeito a espada de Dâmocles da moral judaico-cristã) pode reivindicar o estatuto de perfeição, estando sujeito ao erro que é inato. A partir do momento em que os ambiciosos juízes do erro alheio percebessem que podem ser chamados à condição de réu por um motivo análogo, teriam o máximo incentivo para abdicarem da toga em que se autoinvestem. Não é confortável estar no papel daquele de que se ousa ser seu julgador.
O direito ao erro precede o direito a não ser julgado por ele. A causalidade é lógica. É inútil consagrar o direito ao erro como eminente direito fundamental se não for garantido o direito a não ser julgado pela sua prática. Caso contrário, corremos o risco de ser uma espécie ingovernável, permanentemente intrusiva. O risco de sermos todos porteiras. De cada vez que alguém transborda para a esfera do outro, não pode ter a pretensão de não ser invadido por um outrem qualquer. Não se cuida de garantir a reciprocidade. Cuida-se de a evitar, vedando a ousadia de comentar (sequer) um erro cometido por alguém. 
A imperfeição ainda é melhor garantia antropológica. Conservá-la não transige com o topete de julgar alguém pelos erros transatos.

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