16.1.20

Um bem-entendido


The Smashing Pumpkins, “Cherub Rock”, in https://www.youtube.com/watch?v=q-KE9lvU810
As palavras bem desenhadas, uma caligrafia impecável. Que não sobrem equívocos e nada fique por dizer. E que nada fique por entender. Um bem-entendido é um bem inestimável. Sem as arestas da hermenêutica enrixada.
Não se pode prevenir os contratempos que embaraçam os bem-entendidos. Ou porque as palavras que desenhamos não são a preceito do que intuímos dizer. Ou porque essas palavras são objeto mal-entendido por quem as recebe. Ou porque as dizemos com uma entoação que compromete o seu significado. Ou porque a quem elas se destinam distorce a mensagem, com propósito. Quando as apalavramos, só por um impulso suicida é que não pressentimos um bem-entendido. Bem entendido que ao autor das palavras não faz sentido se não as precaver num castelo onde só têm lugar os bem-entendidos. Os arautos assim cinzelados não quadram com o intencional viés das palavras mal ditas: se elas são ditas, por que não têm correspondência com a intenção que devia ser a delas? Um mitómano pode mentir a si mesmo.
O bem-entendido exige reconhecimento recíproco entre as palavras que se dizem e as palavras que são escutadas. As duas funções são miméticas. Mas o destinatário pode não entender as palavras como elas foram ditas. Um lapso semântico impede a comunicação. Não se faz luz às palavras como elas foram ditas. A sua interiorização desvia-se do pretendido e um mal-entendido medra na dissonância hermenêutica. O autor das palavras, se lhe for dado a entender a divergência, pode reparar o dano. Pode repetir as palavras, acrescentar outras para avivar o seu significado, aperfeiçoando-as de modo a dissipar o mal-entendido. 
O retorno ao bem-entendido pode ser fracassado se persistir a interrupção semântica entre quem proferiu as palavras e quem mal as entendeu, se o recetor não der a entender o vício de interpretação. O mal-entendido sobrepõe-se ao bem-entendido enquanto o dano não for reparado. Será dano irreparável enquanto se mantiver a fratura de comunicação entre o mensageiro e o destinatário. Impossibilitando o bem-entendido. Por isso, às vezes (de configuração indeterminada, porém), convinha fazer uma adenda às palavras ditas. Como se uma legenda viesse a acompanhar as palavras ditas, para não se ferir de morte a possibilidade de um bem-entendido. Seriam palavras em cima de palavras, as primeiras instrumentais das segundas.
Admita-se a impraticabilidade da hipótese: não são poucas as vezes em que as palavras ditas excedem a medida certa. Se a esta prodigalidade se adicionassem as palavras em adenda, não se andaria longe de uma inundação com efeitos possivelmente devastadores. As palavras seriam material contaminante, tóxico. A menos que se aceite que nunca há palavras excedentes e que o bem-entendido é um bem maior.

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