16.10.20

Apontamento (short stories #268)

Ólafur Arnalds & Bonobo, “Loom”, in https://www.youtube.com/watch?v=xMDwqeFQuKg

          Abotoado até ao pescoço. As cortinas servem para embaciar o que queremos escondido. Os olhos forasteiros querem-se forasteiros, a casa um castelo que é refúgio. Às vezes, é preciso ser antídoto da hospitalidade. Não se é contra uma cosmovisão aberta, cosmopolita, do trato com o outro, diferente. Insurgimo-nos contra as intrusões que desarmadilham a cumplicidade íntima que cada um tem consigo. Da modernidade chegam notícias avassaladoras: a exposição pública tem a chancela dos meios digitais que, de uma penada só, tanto democratizam o acesso ao espaço público como expõem as pessoas. Desabotoam-se de casacos. Uns, camada atrás de camada, até lhes sobrar a nudez; outros, alijando apenas certas camadas, mantendo um módico de identidade à margem do olhar forasteiro. Em cada palavra, em cada vírgula, em cada parágrafo possivelmente tresmalhado, serve-se a nudez sem corpos aos demais. Fica-se como um livro aberto, onde os demais podem tresler as palavras, ou delas escarnecer – ou glosá-las, tornando-as seu plágio. Pode ser uma intempérie que se abate sobre a ufania de uns, a tempestade cerebral de outros, ou apenas a necessidade de outros silenciarem o silêncio sepulcral através da récita no imenso palco virtual. Para cada um, sobram umas migalhas, um breviário de apontamentos que ficam esquecidos no lugar das notas de rodapé. Afigura-se uma empreitada demencial: o isolamento do mundo que medra na alteridade de meios, uma espécie de contumácia. Como se fossem monges hodiernos, sem peias da metafísica. Coalescem as furtivas palavras que desaconselham o ensimesmar: “hoje ninguém pode estar descontactado. É criminoso estar nessa condição”. Não sabem, os novos profetas, que um punhado de almas não se transfigura no acessório palco onde desfilam os fingimentos que se autoimolam numa pira de ilusões. Acabam todos incensados na fogueira da intolerância. São todos importantes, fundidos na sua inigualável, mas não apercebida, desimportância. 

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