6.10.20

Salto em cumprimento

Portishead, “The Rip”, in https://www.youtube.com/watch?v=QmvmQPvr3-A

Salto em cumprimento: não é erróneo o ajuntamento de palavras: um verbo (e não substantivo) e o sinónimo de uma saudação – não é a evocação de uma modalidade olímpica. 

Saltamos o cumprimento, dever geral de convivência forçado pelas costuras das excecionais circunstâncias. É como se o afeto – a sua física comprovação – tivesse sido banido. Ou como se as simples normas de conduta que regem a convivência tivessem sido obliteradas, atiradas para o marmóreo lugar do oblívio. 

Há sucedâneos: emprestamos o cotovelo, mas o ritual entronizado continua a ser cultivado na estranheza do gesto. Parecemos atores entregues a uma encenação risível enquanto atiramos o cotovelo na direção de outro cotovelo, naquele contorcer matraqueado que assinala o absurdo, enquanto o absurdo se convoca como substituo de um hábito. No dorso dos sucedâneos, a insistência em manter uma sinalética que perpetue a saudação. A convivência insiste em amadurecer os cumprimentos. 

O corpo do outro tornou-se a fonte de propagação da peste. Tornou-se um lugar evitável. Britanizámo-nos – os britânicos sempre foram austeros no contacto corporal como eixo da saudação social. Praticamos o salto ao cumprimento e não somos atletas olímpicos. Não sabemos por quanto tempo; não sabemos quanto será o tempo ocupado pela peste. E também está fora da cogitação adivinhar como será a feição dos novos tempos depois de passado o abismo da peste, se os velhos hábitos serão resgatados – se o tempo que passou foi tanto ao ponto de embaciar a memória, ou se as pessoas interiorizaram o novo código de conduta higiénico, mais restritivo, e prescindem da saudação que é sinónima do contacto dos corpos. 

Dir-se-á: salto o cumprimento, porque o ónus da peste derramou a adstringência dos afetos materializados em contacto dos corpos. Porventura o devir seja limítrofe a um redesenho dos usos. E nós, intérpretes desse redesenho, convencidos que o afeto não se alimenta apenas do apelo da pele do outro. 

Por então, já teremos aprendido a saltar o cumprimento.

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