22.10.20

Elogio rasgado

Rhye, “Taste” (live in Paris), in https://www.youtube.com/watch?v=ZM7drRMLAr0

O elogio rasgado é um lugar traiçoeiro para se estar. O elogiado pode não saber que a palavra que complementa o elogio é verbo, não é adjetivo – e que, por a visão já não ser a de outrora, escapou-se-lhe a vírgula entre os dois termos. Um elogio assim rasgado é a negação de si mesmo; ou a confissão do que dantes teria sido episódio de elogio foi, entretanto, rasgado, deixando de o ser. O elogiado nunca saberá se o elogiador queria usar um verbo ou um adjetivo à frente do substantivo. Para discernir a vírgula em separação dos termos, é aconselhável a visita a um oftalmologista.

Ainda que seja adjetivo: o idioma tropeça nestas fórmulas ardilosas (há quem lhe chame “expressões idiomáticas”). Se o elogio é rasgado, é porque deixou de existir. Quando rasgamos uma folha de papel, ela passa à história como inexistência. Quando rasgamos a pele, ela fica com cicatrizes; um elogio rasgado é um elogio exposto às vicissitudes das cicatrizes? Ou então, pode ser sinónimo de algo que se abre e fica exposto à consideração do utente da coisa. O elogio é rasgado e fica patente aos sentidos do elogiado. Tal como no consumo da coisa que só é consumível depois de rasgado o invólucro que a cobre, o elogio rasgado fica ao critério do elogiado.

Tudo depende de como se entoa o elogio. A impostura poderá ser tanta que a voz delicodoce se arma como esconderijo do oposto do que está a ser dito. Um elogio rasgado pode ser um presente envenenado. Pois ele há elogios que são um despautério na pessoa do elogiado. O elogiador sabe-o. Ao rasgar o elogio, está a rasgar a alma do elogiado. Não há critério mais cínico para escarnecer de alguém.

Sempre que ouço alguém a proferir a expressão “elogio rasgado”, sobe à superfície a imagem do rasgar em câmara lenta, como quem expropria a indumentária do outro vagarosamente, para ser maior a humilhação. Milímetro a milímetro rasgadas as vestes, com um olhar de desdém que se entroniza na fala que desfaz o elogiado ao risível, sem que este dê conta que a intenção é o antónimo do que é dito. 

Elogio rasgado, pois os que se saciam nas genuflexões consequentes ao elogio (rasgado) precisam tanto de autoestima que nem se apercebem como o rasgado elogio é uma elegia.

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