2.10.20

A encenação dos histriónicos (short stories #263)


Liv Malone, “Tedium Cool”, in https://www.youtube.com/watch?v=SPQWgES7vQE 

          “Eu finjo, tu finges, ele finge; nós fingimos, vós fingis, eles fingem”. Como se fosse uma eucaristia dos peticionários do presente, inamovíveis no seu armário de causas imbeliscáveis. E, todavia, os arautos de tudo isto não passavam de uma encenação de si mesmos. Reconheciam-no. Não se atemorizavam: que se chegasse à frente o primeiro cidadão que jurasse transitar nos antípodas do princípio geral da encenação, para ser acusado de mentir em dobro. A encenação estava banalizada, não tinham nada que recear. Que mal se pode abater sobre os que estimam a frontalidade desassombrada? Por isso, conjugavam o verbo “fingir” como oração imperativa de cada vez que se encontravam para atualizar a conversa. Não censuravam os que conseguiam adestrar encenações mais exímias; invejavam a criatividade, pois de tanto fingirem tornava-se difícil montar um cenário convincente. De tanto fingirem, todos: e de tanto fingirem, a meio do cenário já nem sabiam se estavam apenas a fingir ou se fingiam que fingiam. Discutiam as possibilidades: “menos com menos dá mais. Lembro-me dos bancos da escola. Porventura o fingimento do fingimento é a negação da mentira, o restabelecer da verdade”, especulou um dos confrades. Na voz vulgar, fingir um fingimento era fingir ao quadrado. Eles, peritos no assunto (fingimento), hesitavam na conclusão. Sem embaraço em admitir o formulário do fingimento, restolhavam o chão à procura de pistas que fornecessem a chave do enigma. Não queriam que fingir o fingimento tivesse a aritmética expressão do binómio de negativos que se converte num positivo – seria a negação do fingimento. Queriam que fosse como no adágio popular, pois a arte da encenação não está ao acesso de qualquer um. Desconfiados das suas possibilidades, temiam a demissão como arautos da encenação. Já não sabiam fazer o contrário. O fingimento era o seu ecossistema.  

Sem comentários: