“Não ouves a tua voz? Não a ouves a sussurrar o pleito da prisão, só para saberes como não pode ser apenas quimérica a liberdade?” Avisas: não estimo por cálculos os próximos apeadeiros. Não tomo em mãos guarda-chuvas perentórios porque prefiro ser o santuário onde a chuva se depõe. Não faço da literatura ponto de honra, deixo-a pertencer às páginas onde os escritores se imortalizam. Tenho uma viagem. Uma, por fazer. Talvez mais, um punhado delas, ou umas dezenas. Ainda não perguntei à bússola pelo paradeiro dessas viagens. Dizem-me surdamente vozes desobedientes que não se tira o bilhete para uma viagem de ida e volta. Não sei o que me querem dizer, tão surdamente, essas vozes. “Essas vozes são o palimpsesto da tua voz. É dela que ecoam. Tens de dar conta disso.” As sílabas tartamudeiam o labirinto onde o pensamento se esgrime. Só ouço palavras ininteligíveis; as únicas que consigo reter são aquelas sobre a viagem que só pode ter ida. Configuro o enigma, esforço-me por varrer as impurezas que impedem a visibilidade das palavras. Não sei se temo pelo vazio que se enevoa no palco onde corre a fala surda. “Mas essa fala é a refração da tua própria fala. Só que não reconheces a tua voz.” Ah, se ao menos soubesse de uma modesta cortesia, se o protocolo medrasse dentro de mim, podia educadamente perguntar às surdas vozes para serem étimo claro. Desconfio que sou como o elefante no meio da sala, as porcelanas todas estilhaçadas por ser tão desastrado. Sempre disse que não dava para a diplomacia. São as convenções que se afivelam estruturalmente, aderindo ao peso do tempo. “Teimas em não ouvir a tua voz? É ela que conta os segredos que não sabes.” E se os apeadeiros que estão por vir forem fortalezas inacessíveis, o que faço?
19.10.20
Viagem de ida (short stories #269)
Röyksopp, “Keyboard Milk”, in https://www.youtube.com/watch?v=dF8ojPeSo3s
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