21.10.20

Free pass

IDLES, “Grounds” (BBC 6 Music Live Session), in https://www.youtube.com/watch?v=_YkF-lW1Xa4

De noite, ninguém vê. Ninguém se vê. Não se desça ao lugar-comum para evocar gatos e de como são pardos e de como o pardacento ajuda ao anonimato. Não é por acaso que os meliantes são noctívagos. Com o beneplácito das sombras, é maior o desembaraço. Mas somos seres que aproveitam a noite para acertar contas com o descanso. As cidades desertam. (A menos que sejam como aqueloutras que nunca dormem, nem de noite.)

Há um certo pudor que se alimenta da luz diurna. Ninguém se esconde no seu anonimato. É como se o dia soalheiro insistisse em retirar o anonimato às pessoas. Não que os nomes sejam ostentados à luz do dia, que, a menos que lhes seja perguntado (ou se forem “notáveis”, essa categoria imprescindível da mediocridade contemporânea), os nomes são património do anonimato. O sol tinge-se sobre os corpos que aparecem revelados na sua nitidez. E nítidas ficam as fronteiras entre cada corpo que não se entrega aos ismos sobranceiros que as modas entretecem.

A luz diurna é uma dádiva sobre os que desprezam a noite e a destinam ao lugar residual onde lobriga o sono. Gratuitamente despejada sobre os lugares e as pessoas que neles se encontram, um passe gratuito para que as pessoas se desembaracem das teias ainda embrionárias. Do que somos feitos se não de uma impressão digital avivada pela tela de cores e de luzes emprestada pela duração do dia? Não se arrisquem fados impróprios para consumo, que a noite é a púrpura baixela onde se orquestram os corpos indefesos. Não se terçam as armas, por essa altura, que os corpos estão na iminência do sono e dos sonhos alquebrados não são próceres. 

Mais um trunfo a favor da claridade que campeia enquanto o dia não for hipotecado pelo crepúsculo. A dentição das ideias compõe-se no frémito que é o desejo apalavrado pela luz diurna. Dos outros, os dissidentes que se refugiam na penumbra, não se dirá mais se não ser o seu direito. Haja quem seja madrugador e da alvorada não perca pitada. Pois cada segundo de claridade é o totem fértil da inspiração. 

De noite, somos fantasmas que se curvam à fatalidade do inconsciente. Também é gratuito, mas não é demiúrgico como a alvura pujante do dia. 

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