Uma chuva anciã arruma o dia. Já só a penumbra se anuncia, os rostos deixados ao abandono – como se, de repente, o deserto tivesse tomado conta da cidade. As sombras furtivas sobem às janelas onde se escondem, ténues, as luzes que patenteiam a cidadania em torpor. Ainda não é hora do deitar, mas já se prepara, e de véspera, o dia que se segue. Exercícios mentais, juras de não adiamentos, a mnemónica dos afazeres inadiáveis (que, contudo, hão de ser procrastinados, mais um dia), meia dúzia de páginas de um livro a chamar o sono, possivelmente o mágico comprimido que o instala se se mantiver timorato. E depois, o território dos sonhos. Um evento caudaloso, irrepresentável, um enredo cheio de alçapões, as falas cruzadas que sobressaltam a inteligibilidade do discurso, um caldo de mesquinhez e de bonomia, a inverosimilhança da ousadia. Um retrato que podia ser a fidedigna imagem da cidade que se hasteia no pulsar dos habitantes. Destes, ou de outros. Em surrealista vociferação de uma ideia sem precedentes: e se um dia os habitantes da cidade fossem todos substituídos por forasteiros? A cidade deixaria de ser o que é? Pergunta sem resposta. Um salto no tempo: a manhã é o prolongamento da noite: a claridade baça, arrematada por um nevoeiro persistente que se cola à alma. Não será por acaso que as pessoas andam contrariadas pelas ruas, como se tivessem sido tiradas de casa e o desprazer desenhado nos rostos fosse o voto de protesto. As convenções não toleram adiamentos. As leis preconizam faltas injustificadas para os insubmissos que façam sobressair a vontade sobre as convenções. Não há nada a fazer. Empenhados ao fluir do tempo e da cidade, andamos iludidos que somos suseranos da nossa vontade. O amanhã cuidará de agravar a fenda entre o palco em que somos e a nossa intuição.
23.10.20
Ovos moles (short stories #271)
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