Não dou alvíssaras – nem me proponho entregar às alvíssaras. Na meação dos propósitos, desobstruo a paisagem das paragonas onde se professa uma estultícia de que não quero ser peão nem pajem. Talvez seja tutor do meu olhar e, para bem das minhas intenções, só o deixe dirigir-se aos lugares onde sei não ter agressão gratuita por mote e por consequência. Deponho a minha coroa, prontamente recusada, nesse altar densamente povoado por estetas do desprazer, querubins da corruptela, epítomes da insídia, oximoros de si mesmos. Estou à margem deste caudal, dele sabendo ser um potentado do nada, a inanidade absoluta, a literalidade do vazio desembaraçada de alfândegas. Quero, ao império da frivolidade, doar uma narração de desinteresse. Não quero, em muitos aspetos, o património genético de um mundo assim desembaraçado; prefiro os embaraços onde se convolam as artérias de um sangue em ebulição, em vez de um sangue marasmo, fétido e algoz, acabado. Quero ser cronista deste desinteresse e dizer, nem que seja em laivo pretensioso, “de toute façon”, só para arrematar uma pueril erudição que dispensa iconoclastas. Não darei palco aos vetustos penhores dos costumes. Aos mastins que mordem à traição, só quando as presas viram costas, e dão logo à perna antes que a presa, iracunda, a eles se atire. Nem aos tentaculares, obnóxios padres do compadrio, os que não vingam por dote, mas por serem peritos nas portas giratórias onde dançam as poderosas influências. De tudo isto, com um cálice de generoso vinho empunhado, possuo o mais elevado grau de indiferença, e a ele brindo. Não me julguem pela apostasia, por ser insubmisso aos códigos de conduta, um pouco como um eremita exilado num refúgio mental. Não me considerem para o jogo das comiserações, nem para a fábula das compensações. Dispenso a generosa liberalidade. Não me julguem, e ponto final.
29.10.20
Crónica do desinteresse (de toute façon) (short stories #273)
Ludovico Einaudi, “Experience”, in https://www.youtube.com/watch?v=CVshTmAYexg
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