Era um sarrabulho feito com o bafo matinal dos atletas do inadvertido. Convocado o primeiro-ministro, mandou dizer que tinha a agenda preenchida (comme d’habitude). A nomenclatura agigantou-se em defesa do timoneiro: ele é lá possível duvidar da palavra de sua excelência? Um endemoninhado protestou em jeito de interrogação retórica: “quem comprava um automóvel usado a esta pessoa?” (Se lhe perguntassem – o que não foi o caso, pois ninguém lhe prestou atenção – diria não se tratar do primeiro-ministro, sem esclarecer a quem se referia, deixando no ar uma perene dúvida que acabaria por consumir os transeuntes). Treslendo o olhar, o edil favorito das coquetes antecipava os putativos disfarces, acusando os adversários antes do tempo. “É preciso estar três passos à frente desta gente”, acrescentou, enquanto, esbaforido, serpenteava as mãos freneticamente, dir-se-ia que estava a afugentar um enxame de moscas que o azucrinavam, ou algo de semelhante. O porteiro do ministério esqueceu-se da genuflexão e o ministro desviou o olhar do telemóvel (onde consultava uma página proibida pela rede do ministério) para repreender o funcionário. “Se fosse o primeiro-ministro, o senhor não se levantava?”, inquiriu, arrogantemente. O primeiro-ministro tomou conhecimento do episódio e não perdoou a ciumeira do por-muitos-considerado-seu-delfim. A demissão esperava-o ao pequeno-almoço do dia seguinte. A amante, que se esgueirara pela garagem para escapar ao voyeurismo dos fotógrafos bisbilhoteiros, procurou aplacar a fúria do já ex-ministro. Iracundo, o homem afastou-a e, com maus modos, sentenciou: “vai lá fazer um jeitinho ao nosso primeiro, que é tão querido”. Um mal nunca vem só: num só dia perdeu a sinecura e a lúbrica amante, que não mais o quis ver. O presidente fez de conta que não sabe nada (pese embora a omnisciência dos serviços secretos, diligentemente ao seu serviço). Os analistas desconfiaram que um golpe palaciano estava em preparação. Não sabiam se seria da autoria do ex-delfim, da sua outrora amante (afinal, a soldo da espionagem espanhola), ou do presidente.
14.10.20
Manicómio (short stories #267)
Linda Martini, “Adeus Tristeza”, in https://www.youtube.com/watch?v=0Rc-9Bz_Sdo
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