11.11.20

Babugem

Rhye, “Black Rain”, in https://www.youtube.com/watch?v=0fizVDRsvOI

- Um ano raro.

- Deveras.

- É a surda vingança de termos pressa de apressar o tempo. Ela vira-se contra nós por sentir que queremos chegar a ele antes de ele chegar a ser tempo.

- Materializam-se as angústias no ir e vir das ondas que chegam à praia. O restolho, aquela “rosa de espuma” que parece respirar em rima com o rumorejar das ondas, já não conta para o inventário.

- Faz-me espécie que ninguém se insubordine contra os mastins disfarçados de generosos cordeiros.

- O que queres dizer com isso?

-  As pessoas parecem anestesiadas.

- Às vezes, a confiança traz esse preço a tiracolo. As pessoas, por confiarem, não chegam a intuir como os que são depositários da sua confiança não são confiáveis.

- O olhar embotado por uma venda. A venda onde se merca a confiança. É a História da humanidade.

- Um dia jurei que deixava de ler jornais.

- Desconfias que os jornais são testas-de-ferro dos que não são dignos de confiança?

- Isso não importa. Só não queria receber no pensamento a enxurrada de notícias que bolçam um paradoxo: somos instruídos a ser mais uma peça na monstruosa engrenagem a que podemos chamar sistema; mas as novas que nos traz a imprensa são pútridas, um pré-apocalipse, como se o sistema estivesse viciado e sem remédio.

- Eu tenho uma teoria: a crise é imorredoira. De outro modo, como podias convencer o cidadão que ele tem de ser governado?

- Isso é um contrassenso democrático! Por que escolhem os governantes se se insinua aos governados que a crise é imorredoira? Votarias tu num inepto?

Não estás a perceber: a mensagem é outra: no auge da imperfeição humana, votem em nós, já conhecem as nossas fragilidades, mas as alternativas são um pasto de incerteza. Não corram esse risco. Nós somos o mal menor.

- E quem se contenta com um mal?

Se for menor, o mal converte-se num bem imediato.

- Precisamos de ser apascentados, é a súmula?

Diz-me tu que não.

- Digo não a esse não. Não concebo um escol de medíocres. A menos que seja este o lugar onde campeia o princípio geral da mediocridade e os medíocres que se entronizam sejam tidos como capazes. Não podemos excluir a hipótese da adulteração de juízos, um viés cognitivo, como qualquer outro.

Diz-me tu: e quem participa o princípio geral da mediocridade? Quem assume esse lugar centrípeto, quem se investe no papel sobranceiro?

- Não me compete sabê-lo. Eu estou na extremidade do sistema, sou um agente passivo do mesmo, mas em mim não se pratica a lobotomia que exclui o juízo crítico.

És de uma severidade excruciante. A principal vítima da tua severidade.

- Podemos fazer um jogo de eufemismos, ou apenas discordar do diagnóstico. Tu consideras severidade. Eu ofereço a hipótese da indisponibilidade para ser um manso peão à mercê dos humores dos poderosos.

Sabes que não consegues mudar o curso dos acontecimentos?

- Não é esse o meu propósito. 

E se te fosse dado um lugar no escol de quem decide: o que farias para mudar os acontecimentos? Se te fosse dada a possibilidade de transfigurar o sistema que te desapraz?

- Não foi esse o fado que me foi atribuído. Tão-pouco o desenvolvi com a madurez. Há os que nascem para mandarem. Há os que obedecem, acriticamente, mansos seguidores das provisões do sistema, e agradecem, ainda por cima. E há os que não renunciam à exigência sem terem de ser arregimentados para o escol dos mandantes. Essa não é a sua função. O exercício da crítica não os atira para o mar das exigíveis alternativas.

- Não te incomodam os passos em falso? Saberes que podias, de braço dado com outros, corrigir esses passos em falso?

- Não. Não é nesse tabuleiro que me movo.

- Não é incongruente?

- Não. É o meu contributo para denunciar a anorexia geral.

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