4.11.20

Morder na razão, ou morder a razão? (short stories #277)

Mogwai, “Dry Fantasy”, in https://www.youtube.com/watch?v=55wY7XrGFzY

         Não vás até aos promontórios inacessíveis em demanda da noção de razão. Não queiras saber em que pias batismais é crismada a razão. Não te importunem as ruelas ermas onde se levantam os rudimentos da razão, pois quando a ti chegarem se embebem adulterados. E, no entanto, cicias um lamento de cada vez que vês o copo da razão esvaziar-se diante do impotente olhar. Às vezes dizes, em pose contemplativa, que darias tudo por um módico de razão – e não intuis que na posse da razão e sem o resto serias um imenso vazio, irrisório. Não de razão como quem a si chama o vencimento num pleito, mas da razão que informa as veias da lucidez. Só que são tantas as vezes em que interrogas as fronteiras da razão, quando a tua cosmovisão te adverte que a razão se ausentou para territórios limítrofes (na melhor das hipóteses) ou para territórios desconhecidos (na pior das hipóteses). É quando te apetece morder na razão. Não como um mastim enraivecido que, com a dentada, despeja uma dose de saliva e desvia a razão dos bons caminhos. Antes, como alguém que ao morder na razão espera pelo efeito inverso: que os dentes que se assanham na razão dela tragam uma seiva que fermente em ti os seus rudimentos. Outras vezes, desconfiado dos penhores da hora acertada, os zeladores dos costumes enraizados e tidos como sinónimos da razão, só te apetece morder a razão. Esperas que a saliva infecta devolva um contrapeso de loucura que a razão parece precisar. Não se trata de a adulterar. Nem de seres o agente que envenena a razão: a razão, se é que existe, é bom que saibas, supera, e em muito, a tua capacidade de adulteração. Ao menos, sobra-te uma paz interior. A sublevação contra o que se convenciona chamar razão, à escala da tua intrínseca e heurística desrazão. 


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