9.11.20

“Não quero ser doutor” (short stories #280)

Django Django, “Spirals”, in https://www.youtube.com/watch?v=ak3PuKKukd8

                (De uma música dos Linda Martini)

          Que haja um dia que doutor não me chamem. Essa é a diuturnidade de uma vida inteira, a sua espada de Dâmocles. Um sacerdócio, virado do avesso. Pois se olhar para o cartão que me identifica não aparece “doutor”. Quero ser cidadão de corpo inteiro, não portador do avantajado estatuto de quem ostenta um pergaminho. Não como os que se ufanam de serem doutores e insistem no trato. A linhagem que excede um título não diz coisa alguma sobre a pessoa. Não quero ser doutor; apenas um nome, e um nome que se deite no caudal onde todos os anónimos são matéria possivelmente infecunda. Não se transige no carrossel onde se brandem afanosamente as credenciais. Esse é um espectro tomado pela estultícia. Não se avalizem as diferenças pela ostentação de tais credenciais. A vanidade derrama-se sobre o risível, altaneiro altar onde se elevam os perfunctórios doutores. Não lhes sobra nada da intendência. A não ser um espelho onde se apreciam por dentro de um narcísico exercício. Deles não exijam atributos distintivos. Pois eles não se distinguem, para além da vacuidade do estatuto que, espremido, não deixa nada de distintivo à mostra. Se doutores são estes vulgares espécimes que desfilam numa procissão de pares, fardados a preceito como soe ser pelos que reclamam pertencer a uma casta superior em pose soberbamente orgulhosa, prefiro ser humilde serventuário da insciência. Um nome, apenas. Um nome. Se os nomes são inteiros e as éclogas onde se pastoreiam doutores são poços fundos drenados, não hesito. Não é no mapa dos vaidosamente eruditos que quero ser inventariado. Não é nos algares onde eles deitam a sua prosápia que quero ser aprisionado. Não quero ser doutor. Quero ser, apenas, um nome inteiro. Um nome com um testemunho para dar.

Sem comentários: