26.11.20

“Salvo o devido respeito”

Ty Segall & the Muggers, “Breakfast Eggs” (live on KEXP), in https://www.youtube.com/watch?v=-9XDzL9ml5M

Muitas vezes, manda o código de conduta (já que devemos ser todos cavalheiros...) que a discordância seja precedida pela expressão cautelar “salvo o devido respeito”. Dizem ser uma fórmula de cortesia, o prelúdio ao catártico direito de discordar da ideia de quem se constituiu oponente. Como quem diz: “descontada a elevada consideração que vossa excelência infunde, venho por este meio informar o humilde direito à discordância, que, em todo o caso, não causa dano à elevada estatura intelectual nem ao respeito de que continuará a ser imensamente credor.”

É uma perda de tempo. Não temos de parecer cavalheiros para o sermos. Não temos de pedir desculpa (a fórmula de cortesia tem essa ressonância) por não convergirmos. Mal andaríamos se a divergência fosse entendida como sinal de desrespeito. Isso sim, seria o mais ultrajante desrespeito: que em nome do respeito capitalizado por um estatuto dionisíaco, o interlocutor considerasse um topete o parto de ideias diferentes das suas. 

Dizer “salvo o devido respeito” é um avatar de mesquinhez. Primeiro: a proclamação começa com o advérbio “salvo”, como se o respeito imperativo ao interlocutor tivesse de estar a coberto de qualquer golpe espúrio desferido pela ambição, aparentemente descabida, de postular uma ideia contrária. Segundo: diz-se “o devido respeito”, o selo da sanha hierárquica a que é imputada a letargia que trava o rastilho de qualquer tempestade intelectual, mantendo férreas amarras que castram a criatividade (ou o simples direito de ter as ideias próprias, por absurdas que sejam). O “devido respeito” é o compêndio de uma sociedade estratificada em que as castas superiores não podem ser incomodadas apenas porque são castas superiores. Ou: apenas porque sim, todo um programa de persuasão inane. É o império do respeitinho que é muito bonito que serve para hastear um servilismo que mantém elites que, de outro modo, há muito teriam deixado de o ser.

A reinvenção semântica pode conferir um novo sentido à expressão idiomática. Já que somos todos atores e andamos todos a fingir de conta que fingimos, que o método seja levado aos limites. Diga-se, em pleno pleito, “salvo o devido respeito” sem corar nem adulterar o tom, evitando que este escorregue para timbres irónicos (sob pena de a intenção ser desvendada). Diga-se: “salvo o devido respeito” como a negação do proclamado, como quem firma os pés no chão e, categórico, ostenta-se ao interlocutor, orgulhosamente disparando nas entrelinhas: “estou-me nas tintas para o que pensas, porque sei que, antes de mim, já tinhas devolvido a cortesia.”

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