9.2.21

Aguaceiro (short stories #296)

Arlo Parks, “Hurt”, in https://www.youtube.com/watch?v=2qz4cAAwtv0

          A terra não enxugava quando um aguaceiro a abençoava. Era como se os deuses despejassem a raiva sobre o chão que, pobre, já não aguentava mais água nas entranhas. A água precipitada dispunha-se sobre o chão, como se o chão deixasse de ser terra e passasse a ser uma película de água que o cobria. Entretanto, o aguaceiro pedia tréguas. Vagarosamente, o excesso de água foi sendo bebido pelo solo. Já se via que o chão era chão, terra imoderadamente ensopada, mas terra, na sua cor castanha avivada pela chuva assídua. Um colo lamacento. O horizonte pressagiava o fim das tréguas. Uma nuvem acastelada, plúmbea, percorria o caminho que vinha do mar. Contrariadas, as pessoas abriram os guarda-chuvas quando as primeiras gotas grossas se abateram sobre o lugar. A atestar pelos rostos desagradados, adivinhava-se que estavam fartas do regime de aguaceiros. Se ao menos vissem o mar, como está encapelado; se ao menos pudessem saber como o mar orquestra o desarranjo do tempo, é porque não estariam imersas nos seus afazeres – e elas tinham ouvido o radialista, logo pela manhã, lamuriar-se da segunda-feira e lacrimejar as saudades pelo fim-de-semana que terminara há poucas horas. Quase todas as pessoas protestavam, no seu íntimo, contra o inverno; e contra a segunda-feira. Estavam desabituadas do inverno que fizesse jus ao nome: os anos pretéritos tinham sido apenas uma modesta aproximação ao inverno. Ao passar o pontão sobre o riacho, a corrente abundante que agigantou o moderado fio de água impressionava. Como é possível que os aguaceiros iracundos engordem tão depressa o riacho insignificante? O meteorologista de serviço podia adiantar dados estatísticos e o “índice de saturação dos solos” em defesa do regime de aguaceiros. As pessoas, mal-habituadas, corriam na sua azáfama, ou contra a sua azáfama, suplicando por tréguas que não fossem intermitentes. Em silêncio, suplicavam pela primavera (como pareciam suplicar pela sexta-feira, ao entardecer).

Sem comentários: