2.2.21

Museu das lágrimas

Trent & Mariqueen Reznor, Atticus Ross with the Alumni Band, “Fashion”, in https://www.youtube.com/watch?v=klM9RlJfsVg

“Não se desperdicem as lágrimas”, ordenou o ministro da cultura. As lágrimas vertidas pela morte de um ente querido. As lágrimas derramadas por desamores. As lágrimas apanhadas no sarcófago da mágoa. As lágrimas apenas inventariadas no lagar das emoções. As lágrimas que podiam atear incêndios, ou apenas serem recolhidas pelo mar que as recebe de braços abertos, pois o mar alimenta-se do seu salitre.

As lágrimas iam sendo recolhidas por funcionários do ministério instruídos para o efeito, a pedido de quem quisesse contribuir para o museu das lágrimas. Houve quem perguntasse se esta era a poda do ministério da cultura. O ministro, acossado, veio a público assinar a fundamentação: as lágrimas são um expoente das emoções e dos sentimentos de um povo. E se a cultura não bebe na fonte que é o sentir do povo, para que serve a cultura?

Extinta a polémica, o espólio do futuro museu ia somando decilitros atrás de decilitros. O curador nomeado para o museu formou uma equipa de museólogos para catalogar as lágrimas por entrada. Pedia-se aos doadores que escrevessem um breve testemunho que acompanhasse a doação das lágrimas. O anonimato era regra de ouro. Futuramente, os visitantes do museu das lágrimas teriam informação sobre as lágrimas inventariadas. De outro modo, essas lágrimas ficariam na restrição de quem as verteu. Perder-se-iam na pele emaciada dos rostos, em lenços amarrotados, misturadas com secreções nasais – e não se podia admitir que as lágrimas tivessem semelhante destino. Através do museu das lágrimas, os doadores consentiam a comunhão com os visitantes do museu. O tal sentir coletivo – está na moda.

Um certo dia, o curador do museu emocionou-se com a nota escrita que acompanhava um frasco com lágrimas: 

“Estas lágrimas foram tiradas a custo. Morreu o meu gato. O gato que esteve na minha vida dezanove anos. Morreu nos meus braços, doente, decadente. Morreu antes que eu deixasse prolongar o seu sofrimento, que a doença terminal cuidaria de cavar mais agonia. Morreu nos meus braços. Serenamente, enquanto o efeito da anestesia se combinava com a eutanásia. E se senti uma recompensa interior pela morte sossegada do gato – quero acreditar que ele nem deu conta –, senti um lamento em forma de abalo sísmico a percorrer o meu corpo por todas as pessoas que não conseguiram morrer antes que o sofrimento as levasse, exangues. Também verti algumas lágrimas por essas pessoas.”

E o diretor do museu, por sua vez, foi vertendo lágrimas ao ler os testemunhos que acompanhavam as lágrimas doadas. No dia da inauguração, os visitantes eram confrontados, à entrada do museu, com pequenos frascos que expunham as lágrimas do diretor do museu.

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