23.2.21

O cão que entrou no jogo e foi expulso pelo árbitro

Deftones, “Genesis”, in https://www.youtube.com/watch?v=fbp0bET06wc

Não se saberia dizer ao certo se ainda eram onze contra onze que pelejavam pela bola no relvado municipal. O jogo já ia adiantado e, em estando adiantado, a probabilidade de um interveniente ter ido embora mais cedo era elevada. Para o caso, a suposição das equipas por completo. De repente, no relvado municipal entrou um intruso e passaram a ser vinte e seis a pisar o relvado. Um cão, sem pré-aviso, saltou para dentro do relvado e, em passo vagaroso, indiferente à labuta dos novos gladiadores, saltitou por ali fora.

O árbitro não esteve de modas. Interrompeu o pleito, pois as leis do jogo ordenam que o jogo deve ser suspenso se um elemento estranho nele se infiltrar. Era isso, um infiltrado, o canídeo nitidamente vadio – e nitidamente, por falta de coleira identificativa. Para o árbitro, era indiferente a condição do cão. Fosse vadio ou não, era um elemento estranho ao jogo. Depois do apito estridente, o árbitro anunciou, com a voz grossa de quem ajuíza os descaminhos dos outros, que havia um elemento estranho ao jogo e que era preciso removê-lo.

Como os pleiteadores interromperam a função, travando a correria insana à procura da posse da bola, o canídeo imitou-os. Impassível ao burburinho causado por um dos três homens que vestiam de preto, desceu as ancas ao nível do relvado e sentou-se, à espera que a correria fosse reatada. Não sabia, o cão vadio, que o árbitro não estava pelas medidas. Viu aquele homem vestido de preto a caminhar, resoluto, na sua direção. Ele não era desconfiado. Porventura o homem vestido de preto era amigo dos animais e, ao vê-lo no relvado, queria afagá-lo. 

O cão equivocou-se. Em passo célere e pose militar, o homem vestido de preto meteu a mão na algibeira junto ao peito e tirou um papel vermelho, dirigindo-o, austeramente, na direção do cão, enquanto a outra mão apontava num sentido que levou o cão a inquirir se, por acaso, não seria o lugar onde umas iguarias o esperavam. O cão, insistentemente sentado, não obedecia às ordens, treslendo o significado do cartão vermelho que o árbitro zeloso exibira. Mas o cão não estava enganado. O seu olfato apurado sentiu o perfume de uma iguaria que vinha das suas costas. Era uma senhora idosa que acenava com um pedaço de carne (uns humanos disseram “bifana”), enquanto a outra mão atraía o cão ao seu encontro.

Ficou para a História o caso em que uma idosa conseguiu ter mais autoridade no jogo do que o árbitro que o tutelava. E ficou para a História o caso de um cão adotado pelo clube da terra que, em supersticioso exercício, dando-se o caso de a agremiação ter derrotado a mais rival de todas, fez do cão vadio a sua mascote.

Sem comentários: