No parapeito do sonambulismo, o diletante aproveita a folga do poço do inferno para apreciar a paisagem. Agarra-se a um trevo de quatro folhas que encontrou pelo caminho; sabe que se o trevo vier composto com quatro folhas, é sinal de sorte. Pergunta por que deseja a sorte. Depois lembra-se (o dia de folga alvoraça um princípio geral de esquecimento): é de sorte que precisa de cada vez que desce ao poço do inferno.
O diletante esqueceu-se que o trevo já não tem quatro folhas. Gastou-o com o contínuo esfregar dos dedos e uma das folhas desprendeu-se. Pergunta: um trevo de outrora quatro folhas garante a mesma dose de sorte se for amputado de uma folha? E pergunta mais: deve doravante temer o poço do inferno como um desafio à sobrevivência?
Pelo caminho, encontrou um homem que mais parecia um vulto. Passeava um capacete puído.
- Ó homem, por que trazes esse ar tão sorumbático? Foste acometido por um mal que te alquebra?
- Deixa-me em paz, não te perguntei nada. – respondeu, agressivo, o homem que tinha a forma de vulto.
- Erras por onde, bom homem? – insistiu, diplomático, o diletante, que aproveitava o dia de folga do poço do inferno para pôr o mundo em dia.
- Que pergunta sem sentido! Se estivesse em errância, como saberia por onde tenho andado?
O diletante percebeu que o outro homem não queria ser importunado. Qualquer palavra que se lhe dirigisse era importunação. No chão, jazia o trevo outrora de quatro folhas. Já emaciado, numa exasperante decadência que se apressava, tão depressa os despojos do trevo enrugaram e amareleceram. O homem-vulto abeirou-se do diletante:
- Ó catita, sabes onde fica o poço do inferno?
- Oh, se sei! Eu sou o endemoninhado que cruza as tábuas horizontais do poço do inferno.
- Homessa, homem! Eu não perguntei que função é a tua. Perguntei onde era o Poço do Inferno.
No apogeu do diálogo de surdos, o capacete puído que vinha a tiracolo do homem-vulto despertou curiosidade no diletante.
- Para que trazes o capacete, se não te vejo motocicleta a preceito?
- Sossega, bom rapaz! Não quero tomar de assalto o teu ganha-pão.
- Então, o capacete? – insistiu o diletante, imerso numa indiscrição irreprimível.
- Já tenho o capacete. Estou à espera que alguém me ofereça o motociclo. Mas não vou para o teu poço do inferno.
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