22.2.21

A Constituição é heterossexual ou os homossexuais (deviam ser) inconstitucionais?

Micro Audio Waves, “Down By Flow”, in https://www.youtube.com/watch?v=rHgrfRIcUWE

A verdade – que o chamado lobby gay gostaria de ignorar – é que os homossexuais não passam de uma inexpressiva minoria, cuja voz é despropositadamente ampliada pelos media.

João Caupers, presidente de Tribunal Constitucional

Premissa: a cada um o seu direito à opinião. A liberdade de expressão admite o que julgamos inaceitável, o risível, o abstruso, o nosso oposto, tal como admite o que julgamos serem ideias formidáveis, ou apenas declarações que passam anónimas pelo meio dos pingos da chuva. A liberdade de opinião é um caminho de dois sentidos: não podemos protestar contra alguém que reprimiu a liberdade de expressão de outrem e depois propor que alguém que está nos antípodas da nossa posição seja calado. Convém não o esquecer: um caminho de dois sentidos.     

Interpelação: um juiz do Tribunal Constitucional devia ter um cadastro imaculado no que ao disparate em registo escrito diz respeito? Proponho um axioma em resposta (e um par de interrogações em sua articulação): todos temos o direito à tolice. Aqueles que escrevem e deixam peugada dos seus escritos, quantos já não abjuraram textos escritos num tempo pretérito? Quantos, ao voltarem a um texto com o lastro do tempo, não o reescreveriam se o quisessem reescrever?

Nem a premissa nem a factologia impedem que discorde da posição assumida pelo presidente do Tribunal Constitucional (ou por qualquer outro simples mortal). A citação do presidente do Tribunal Constitucional causa-me náuseas, mas nunca pretenderia silenciá-lo. São estas posições polémicas que contribuem para o amadurecimento da sociedade. Instigam o debate e permitem-nos assumir uma posição que não seja apenas frívola. São o rastilho do pensamento estruturado.

 Como espero que a minha heterossexualidade seja respeitada por todos os outros (homossexuais, heterossexuais e outros, sem distinção), autoimponho um dever de respeito pelas opções sexuais dos outros. Não uso como recurso construções mentais (e menos ainda as reservas mentais que o magistrado tem) que dispõem rótulos quantitativos nessas opções sexuais – como os números fossem confundidos com legitimidade democrática. Eis a bitola argumentativa do presidente do Tribunal Constitucional: se és uma minoria, devias ter acesso proporcional ao palco público. Perguntar-se-ia ao douto juiz: e se a medida for ultrapassada, silencia-se o excesso para fazer respeitar a sacrossanta proporcionalidade?

A homossexualidade dos outros parece incomodar João Caupers. Há naquelas palavras um acinte mal disfarçado. O presidente do Tribunal Constitucional acantona os homossexuais, essa “inexpressiva minoria”. E revolta-se contra a voz desproporcionada dos homossexuais (ou do lobby que por eles move influências) no palco público servido pela comunicação social. Caupers joga ao jogo da adivinhação: a tal “verdade” – e isto de capturar a verdade numa moldura é todo um programa de intenções – que “o lobby gay gostaria de ignorar”, faltando saber que método indagativo escolheu para chegar a esta conclusão: fez um inquérito boca a boca (não precisa de se assustar, Professor Caupers...), ou é apenas uma impressão que assomou à sua porta? É a minha vez de entrar no jogo da adivinhação: a homossexualidade dos outros incomoda assim tanto o presidente do Tribunal Constitucional? Assalta-o em pesadelos? Ou, ao invés, protagoniza inconfessáveis delírios oníricos no juiz-conselheiro, que tenta reprimir através de uma veemente reprovação?

O presidente do Tribunal Constitucional parece muito confortável em saber que os heterossexuais são a maioria. É uma reação pueril. O que interessa se alguém faz parte de uma maioria ou de uma minoria, se o que mais interessa é se estamos bem por dentro de quem somos? Não parece ser o caso da – jogo outra vez ao jogo da adivinhação do Professor Caupers – alma atormentada do presidente do Tribunal Constitucional.

(Outra lição que se retira deste episódio é que a impressão digital do que escrevemos no passado é inapagável. E: ou somos audazes e oferecemos o nome a tudo o que foi escrito; ou somos timoratos e pensamos um par de vezes antes de dar um texto à estampa.)

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