5.2.21

O boxeur com três dentes a menos

Gorillaz, “DARE”, in https://www.youtube.com/watch?v=uAOR6ib95kQ

Quando acordou, já tinha passado a hora do almoço.

(Era preciso definir o que é a hora do almoço. Para o boxeur, o almoço acontecia quando a fome apertava. Podia ser à hora a que as pessoas tomam o pequeno-almoço, o lanche, ou até o jantar.)

Estremunhado, foi às costuras da alma para saber se a agenda para o que sobrava do dia tinha encomendas.

(Era preciso estabelecer o que era a agenda para o boxeur. Ele já não pegava numa caneta há já nem se lembrava quanto tempo. Mas tinha uma memória prodigiosa. Fotográfica. Não falhava um compromisso.)

Tinha uma visita ao dentista. No último combate, perdeu mais um dente. Agora a conta de dentes em faltas era três. Até agora fugira ao dentista. Não era dado à estética e não ia “perder casamento” (como o povo costuma dizer) por faltarem dois dentes que o afeavam nas raras ocasiões que sorria, ou quando falava. Agora já eram três dentes. Não chegava para “perder casamento”.

(Era preciso reconhecer que o boxeur não era dado às falas. Como vivia sozinho, passavam-se dias e dias sem proferir uma palavra. Se o exagero tivesse lugar, dir-se-ia que o boxeur ficava com os maxilares enferrujados de cada vez que passava dias e dias sem falar. Como vivia sozinho, não corria o risco de “perder casamento”.)

Na sala de espera do consultório, o boxeur passou os olhos por uma revista.

(Este é um lugar-comum dos consultórios: as revistas empilhadas para fazerem companhia aos pacientes, enquanto a sua paciência é testada na espera pela hora – invariavelmente atrasada – da consulta.)

Parou numa reportagem que atestava uma frivolidade sobre uma pessoa aparentemente em alta na bolsa de valores das celebridades: o senhor tantos-de-tal processou o hospital onde foi de urgência depois de apanhar uma indigestão na sequência de um jantar gourmet que meteu abundante variedade de marisco. Depois de tratado, uma salmonela destratou-o e culpou o hospotal.

(Era preciso saber que o boxeur, um garfo eminente da nossa praça – ou não ostentasse orgulhosamente a estampa de quem passeia cento e vinte quilos –, nunca apanhou uma intoxicação alimentar. A comida bruta, a que nunca se chama “iguaria”, é à prova de intoxicações alimentares.)

O dentista pergunta ao boxeur (entretanto deitado na marquesa) se quer recuperar os três dentes em falta. O boxeurresponde que, à exceção do último dente, não se lembra onde ficaram perdidos os outros dois. O dentista, diplomaticamente, não esboça um sorriso irónico. Reformula: quer o boxeur ver substituídos os três dentes em falta por dentes substitutos? O boxeur pensa e pensa e redargue que os três dentes em falta não lhe fazem falta, porque já era feio antes de ter ficado com três dentes a menos e porque, assim como assim, não sente que vá “perder casamento”.

(Era preciso saber que a estética perdera cotação na hierarquia de valores, o que era só o caso do boxeur.)

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