26.2.21

Revogação (short stories #301)

Daniel Catarino, “Hey”, in https://www.youtube.com/watch?v=sh7Via0gE-w

          As roupas rasgadas. As lágrimas estugadas. Os lamentos improfícuos. Um altar sem deus para venerar. Um nome que se arrepende. A última súplica, antes da convulsão da lua. A espada embainhada no estertor da noite. O abismo sem marca de água. Os dedos quentes que desenham os mares em sobressalto. Os papeis amarrotados deixados ao acaso como destroços da insignificância. O itinerário corrompido pela alma sem fundo. O sangue em convulsão. Um navio que parece fantasma, oferecendo ao rio o seu caudal. A pele caiada. O chamamento dos novos antes que venha o entardecer. A voz que não emudece. O estirador onde se compõe o tempo. A tempestade poética. As ruas sem gente. O móvel que ganha poeira. Os lençóis quiméricos. Os corpos entrelaçados. O tear onde se desembaraça a angústia. As neves eternas, inacessíveis. As leis sem precedência. O amor-próprio, inconsequente. As imagens recorrentes no pedestal que se afunda no precipício. Deuses sem nome e paradeiro. O vulcão aceso. A formidável congeminação do pensamento, imparável. O voo dos iconoclastas que se perdem na indigência. A matilha que atravessa a floresta à procura de abrigo. O olhar sentido enquanto as palavras se arrastam no torpor da cidade. As mãos, outra vez as mãos, na moldura perfeita. A memória futura, desligada do medo. Os nomes esquecidos. Os rostos esquecidos. As palavras que tiveram palco. As juras desarrumadas. O penhor da honestidade contra o sobressalto interior que desavença a mentira. Um infinito que continua incógnito. O uivar de lobos famintos que habitam as cumeadas. As legendas que traduzem um rosto impassível. O corpo outro, frio nos despojos da noite. O vinho, em sagração. O improvável contumaz. A fuga sem causa. O timoneiro sem séquito. O adiamento, até ontem. O avesso da severidade. Um nome em forma de gentileza. A revogação. Do futuro.

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