10.2.21

Particípio passado, ou participo no passado (short stories #297)

Beirut, “The Rip Tide”, in https://www.youtube.com/watch?v=sX7fd8uQles

          Corria no fio do precipício, silenciando as vertigens. No fundo do abismo, estava lá o passado. O passado todo, à espera de o apanhar no seu labirinto cerdoso. Tinha a impressão de que o passado tinha sido cordial. Todavia, havia um medo a incendiar as veias, um medo da repetição do passado. Continuava na marcha malparada no fino fio do precipício. No fundo do precipício, o passado, esfaimado, preparado para o resgatar para a sua fornalha. E ele, convencido que o passado era mesmo pretérito, irrepetível, impossível de ser frequentado. Vagueava nos escombros para aferir o ónus do medo. O precipício parecia não ter fim. Parecia não ter fundo. Conseguia ver o outro lado da montanha interrompida pelo precipício, mas a cada passo que avançava era como se a terra segura estivesse mais longe. O sobressalto do que parecia prematuro nunca foi esconjurado. Havia um apressamento contra a natureza indomável do tempo. Essa era a vertigem que não conseguia derrotar. No esboço das memórias emolduradas, um esboço difuso, sentia-se amordaçado pela sofreguidão do tempo. Do tempo de que ele próprio fora acelerador. Quando dava conta, estava como o malabarista a fazer números de equilíbrio intangível num precipício que não vinha no mapa. Colado ao sangue combustível, sem conseguir povoar as noites com um repouso válido. Era refém do tempo que ele incendiava. Numa aparente negação da fúria dos elementos, que ficavam dormentes no limiar da sobranceria do tempo destravado. Talvez resolvesse a angústia se não participasse no passado. Dizia, para se convencer, que o passado era mesmo irrepetível (e que dizê-lo não era apenas para exorcizar um passado que não merecia exorcismo, pois tinha sido um passado cordial). Ao acaso, tirou a carta que albergava na manga. Todos os relógios, os seus e os que eram públicos, tinham de ser desaprovados. 

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