16.2.21

Reescrita

Kim Gordon, “Hungry Baby”, in https://www.youtube.com/watch?v=1hk8_IPpnL4

O autor não angaria a mediação das palavras para reivindicar clareza. Talvez não seja clareza que se protesta nos contrafortes de um texto. Essa mediação é um alter-ego da simplificação; infantiliza o destinatário, como se fosse preciso considerá-lo penhor de poucas capacidades que o impedem de ter uma compreensão do que está escrito. 

Não se entenda que a reescrita é um exercício de abusiva simplificação das palavras que tiveram a primeira forma. Quase sempre a primeira forma não é a forma definitiva. Aceitam-se depurações, a eliminação de redundâncias, outros critérios estilísticos, uma escolha judiciosa de uma palavra que substitui outra, o enxugamento de partes do texto. A reescrita não pode ser um molde para despir o contexto das palavras que tiveram forma. Não pode constituir-se em peso argumentativo para desfazer uma certa erudição embebida nas palavras escolhidas (a erudição não é crime). Não pode ser uma tábua de salvação do leitor, porque quem escreve não está na posse das faculdades do leitor e não o deve amesquinhar passando o texto pelo torno da simplificação. 

A reescrita opera como uma lima que arredonda arestas. É um recurso para tornar o texto melhor do que na sua forma original. Mas ao arquiteto das palavras não são oferecidas garantias. A reescrita pode adulterar o texto; adultera-o sempre se formos puristas ao ponto de considerar perjúrio da ideia original qualquer reescrita a que o texto se exponha. A reescrita não obedece a regras imóveis. Os cânones variam de pessoa para pessoa. A mesma pessoa pode mudar o pulsar da reescrita em diferentes momentos perante o mesmo texto. Quantas vezes se regressa a um texto datado e apetece reescrevê-lo de cima a baixo?

A reescrita é um instrumento ao serviço de quem escreve. Não tem serventia para o leitor. Este só conhece o texto depois do processo da sua  reescrita. Os meandros da reescrita ficam reservados ao segredo do domador das palavras. A menos que se abra a janela da reinvenção e o escritor se exponha à interação com os leitores, autorizando-os a reescrever partes (ou o todo) do texto. A autoria deixa de ser um processo singular, passando a operar nos termos de um processo colaborativo que desagua na pomposa autoria coletiva. Esta reescrita extravasa a reescrita pura. Contamina o texto com olhares diferentes do olhar do interventor original no processo da escrita. O autor da ideia perde as rédeas do processo. Depressa passa a ser autor da ideia, desapossado da autoria do texto pelo caos a que deu caução com a abertura do processo de reescrita.

A reescrita não deve deixar de ser um processo singular.

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