Depois da trilogia zoófila dos dias anteriores, dei comigo a cair numa armadilha que o estômago colocou no caminho. Depois de ter andado a jorrar palavras em defesa dos direitos dos animais, ontem deixei-me assoberbar pelo pecado da gula. Ao fazê-lo, contrariei o que fui escrevendo na trilogia da sociedade protectora dos animais dos dias passados.
O local do crime foi a mesa do restaurante onde ontem jantei. O instrumento, os talheres que foram colocando, com deleite, o petisco no meu prato. Antes de ser levado até à boca para que as papilas gustativas se saciassem com o delicioso sabor emanado do pitéu. Quem foi a vítima? Uma coisa que em Espanha dá pelo nome de chipirones – lulas bebé passadas por ovo e fritas, imagino que num óleo saturado, excelente para fazer disparar os níveis de colesterol. A pergunta impõe-se: como posso ter tecido loas em favor dos direitos dos animais e, logo a seguir, me ter deixado conduzir pelo instinto das papilas gustativas ordenando a vinda de chipirones?
Um apelo de clarividência ajuda a compreender a minha incoerência. Se os chipirones são lulas com poucos dias de vida, o seu consumo é um atentado ambiental. Todos os chipirones que caem nas redes dos pescadores não passam do estado juvenil. Como não chegam a crescer, estes juvenis roubados precocemente ao seu habitat natural não chegam à idade adulta. Daí que exista um perigo para a regeneração da espécie. É por este motivo que as leis da União Europeia proíbem a captura de todas as espécies piscícolas na sua fase juvenil. Para que a captura de espécimes ainda imberbes não ponha em causa a reprodução da espécie.
Se sou sensível aos interesses dos animais – como o demonstrei nos três dias anteriores de divagações estivais – como posso fazer tábua rasa desta petição de princípio e ingerir chipirones? Ou qualquer outra espécie juvenil, das muitas que são confeccionadas com abundância por estas paragens onde os petiscos doados pelo mar são uma sagração dos sabores da natureza? Sou assim apanhado num beco sem saída, revelador da minha incoerência. Admito que os imperativos dos sabores – outros chamar-lhe-ão apenas gula – levam-me à negação das teorias divulgadas em dias passados. Pior: não consumo leitão, codornizes e cabrito com o argumento de que se trata de “infanticídio animal”. Como posso manter essa ideia se ajudo ao rol interminável de infanticídios, à minha conta apenas no reino marinho? Eis como a prática se divorcia da teoria, como tantas vezes damos conta (mais nas palavras e actos dos outros; com menos verosimilhança nos nossos próprios actos e palavras).
Que fique bem entendido que não quero passar uma imagem de humildade superior ao reconhecer que fui apanhado em contradição. Apenas quero registar como é fácil cairmos na armadilha da contradição. E como isso pode encerrar múltiplos significados. Pode querer dizer que as ideias que professamos não estão amadurecidas. Pode também significar que as ideias que construímos têm a sua lógica interna, mas que é difícil passá-las à prática por diversos imponderáveis que se sobrepõem – em especial porque os instintos, os sentidos, nos empurram numa direcção oposta à sugerida pelas ideias que ventilamos. Ou apenas ser a exibição de que as ideias que propalamos não são o resultado de uma construção genuína, apenas revelações forçadas de uma imagem que queremos transmitir para o exterior.
De repente, são estas as manifestações da patologia que consigo detectar. Se me esforçasse por levar mais adiante o esforço especulativo podia encontrar outras tantas tentativas de explicação para a contradição que tantas vezes nos envolve de forma desarmante. As conclusões que alicerçamos podem ser negadas por nós mesmos, sem necessidade de outro contraditório que não seja a nossa própria acção. O terreno é fértil para a relatividade dos actos e das palavras. Não que se esteja no império da inconsequência, mas apenas da incerteza que nos atrai ao caos.
(Em Sanxenxo)
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