Sabia que neste fim-de-semana era a romaria anual no Carvalhido. Os cartazes que anunciavam as festividades apareciam com profusão nas portas dos estabelecimentos comerciais da zona. Um palco estava montado, prometendo animação com uns quantos “artistas portugueses de primeira água”. A inevitável roulotte das farturas dividia um espaço exíguo com um carrossel. Também sabia que a festança terminava no domingo. Os foguetes matinais despertaram os vizinhos para a boa nova. Nunca adivinhei que, quando meti os pés ao caminho ao fim da tarde, fosse dar de caras com a procissão.
Fui ao supermercado para comprar víveres para o jantar. Ora, entre a minha casa e o supermercado encontra-se o Carvalhido, o epicentro das festividades. Tive, portanto, que atravessar o público que esperava que o padre terminasse o seu discurso para que a procissão se fizesse ao caminho. Involuntariamente fui testemunha de algumas das palavras que o padre soltava do alto de um palanque improvisado, com a ajuda de um megafone que amplificava o discurso para ser audível por todos os crentes e outros passeantes. Sem ter parado no local, não pude tapar os ouvidos às palavras pontifícias que gritavam bem alto da desembocadura do megafone. O padre dizia o seguinte:
“O país está em crise. O momento político é de crise. Também a economia vive uma crise. Até o sistema de valores atravessa um momento de crise”.
Não estivesse imerso no meio de uma multidão de crentes que ansiosamente esperava o início da procissão, diria que estas palavras ecoavam ao estilo do vozeirão de um Carvalho da Silva ou de qualquer outro sindicalista da CGTP. Para aquele padre idoso o país está numa crise sem precedentes. Da política à economia, passando pela sociedade e pelos (não) valores que a conduzem, o panorama é dantesco.
Se esta oratória tivesse sido proferida uma semana antes, teria que me interrogar se o prelado não era uma daquelas pessoas que tão decepcionadas ficaram com a decisão do presidente da república, que recusou a pedinchisse das eleições antecipadas. Só assim se compreende que, para o padre, estejamos no meio de uma crise política. Ao querer solenizar as festas locais da nossa senhora de não-sei-quê com o seu discurso, o clérigo meteu-se onde a igreja não é chamada.
No passado a igreja foi acusada pela cumplicidade com o Estado Novo. Depois apareceu conotada com “a direita”. Hoje são incontáveis os casos em que parece haver uma curiosa aproximação entre a igreja e uma certa esquerda. Desconheço se será inspiração retardada da teologia da libertação que, na América Latina, põe lado a lado Cristo e Che Guevara, a ideologia da disseminação do amor e a violência das armas. Não sei se será uma vocação tardia pelas “causas sociais”, como se a igreja perdesse a vergonha e escondesse a riqueza que detém vindo em auxílio dos mais necessitados sem materializar, com a riqueza que possui, as ajudas que aqueles necessitam.
Tenho uma interpretação alternativa para a nova militância política de muitos representantes da igreja. Antes pela direita, agora mais à esquerda, a igreja sente a necessidade de manter uma presença activa nos domínios que escapam aos assuntos que por natureza deve tratar. A igreja dá a sua perninha em assuntos seculares, para reiterar aquilo que sempre esteve habituada a fazer ao longo de séculos e séculos: interferir na esfera íntima das pessoas. Com esta chamada de atenção à imensa crise que nos atormenta, aquele padre e a igreja que ele representa pretendem afundar as consciências num espírito negativo que apele mais ainda à dependência da fé. A crise é o lenitivo para mais almas se entregarem, descomprometidas e cegas, à fé.
A crise interessa à igreja. Quanto mais gente se sentir deprimida pelos sintomas da crise, maior é o número de pessoas que se refugia na igreja como remédio que atira o fantasma da crise para trás das costas. Eis como uma crise pode ser artificialmente mantida a quem interessa que as pessoas não pensem pela sua cabeça. Pelo meio, uma estranha aliança entre sectores que estão habitualmente de costas voltadas!
Fui ao supermercado para comprar víveres para o jantar. Ora, entre a minha casa e o supermercado encontra-se o Carvalhido, o epicentro das festividades. Tive, portanto, que atravessar o público que esperava que o padre terminasse o seu discurso para que a procissão se fizesse ao caminho. Involuntariamente fui testemunha de algumas das palavras que o padre soltava do alto de um palanque improvisado, com a ajuda de um megafone que amplificava o discurso para ser audível por todos os crentes e outros passeantes. Sem ter parado no local, não pude tapar os ouvidos às palavras pontifícias que gritavam bem alto da desembocadura do megafone. O padre dizia o seguinte:
“O país está em crise. O momento político é de crise. Também a economia vive uma crise. Até o sistema de valores atravessa um momento de crise”.
Não estivesse imerso no meio de uma multidão de crentes que ansiosamente esperava o início da procissão, diria que estas palavras ecoavam ao estilo do vozeirão de um Carvalho da Silva ou de qualquer outro sindicalista da CGTP. Para aquele padre idoso o país está numa crise sem precedentes. Da política à economia, passando pela sociedade e pelos (não) valores que a conduzem, o panorama é dantesco.
Se esta oratória tivesse sido proferida uma semana antes, teria que me interrogar se o prelado não era uma daquelas pessoas que tão decepcionadas ficaram com a decisão do presidente da república, que recusou a pedinchisse das eleições antecipadas. Só assim se compreende que, para o padre, estejamos no meio de uma crise política. Ao querer solenizar as festas locais da nossa senhora de não-sei-quê com o seu discurso, o clérigo meteu-se onde a igreja não é chamada.
No passado a igreja foi acusada pela cumplicidade com o Estado Novo. Depois apareceu conotada com “a direita”. Hoje são incontáveis os casos em que parece haver uma curiosa aproximação entre a igreja e uma certa esquerda. Desconheço se será inspiração retardada da teologia da libertação que, na América Latina, põe lado a lado Cristo e Che Guevara, a ideologia da disseminação do amor e a violência das armas. Não sei se será uma vocação tardia pelas “causas sociais”, como se a igreja perdesse a vergonha e escondesse a riqueza que detém vindo em auxílio dos mais necessitados sem materializar, com a riqueza que possui, as ajudas que aqueles necessitam.
Tenho uma interpretação alternativa para a nova militância política de muitos representantes da igreja. Antes pela direita, agora mais à esquerda, a igreja sente a necessidade de manter uma presença activa nos domínios que escapam aos assuntos que por natureza deve tratar. A igreja dá a sua perninha em assuntos seculares, para reiterar aquilo que sempre esteve habituada a fazer ao longo de séculos e séculos: interferir na esfera íntima das pessoas. Com esta chamada de atenção à imensa crise que nos atormenta, aquele padre e a igreja que ele representa pretendem afundar as consciências num espírito negativo que apele mais ainda à dependência da fé. A crise é o lenitivo para mais almas se entregarem, descomprometidas e cegas, à fé.
A crise interessa à igreja. Quanto mais gente se sentir deprimida pelos sintomas da crise, maior é o número de pessoas que se refugia na igreja como remédio que atira o fantasma da crise para trás das costas. Eis como uma crise pode ser artificialmente mantida a quem interessa que as pessoas não pensem pela sua cabeça. Pelo meio, uma estranha aliança entre sectores que estão habitualmente de costas voltadas!
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