21.7.04

A direita discursa para a esquerda – ou a direita não é assim tão de direita?

Não vou governar para defender os interesses dos mais poderosos. Estou aqui para defender os interesses dos mais necessitados”.
 
Pedro Santana Lopes, discurso de tomada de posse como primeiro-ministro, 17 de Julho de 2004.
 
Alguns dias depois da cerimónia solene que entronizou Santana Lopes, interessa-me reflectir sobre uma tendência que se vem repetindo ultimamente: a necessidade que a direita sente de seduzir o público da esquerda. Antes de explorar o tema, duas notas prévias: uma para explicar hoje vou prescindir das aspas sempre que me referir à esquerda e à direita, apenas para facilitar a escrita (e a leitura); a segunda para lembrar que mantenho a ideia de que há direitas e esquerdas, no plural. Só por comodidade de exposição vou hoje utilizar as palavras no singular.
 
A abordagem da osmose entre direita e esquerda (sobretudo nas suas facções mais moderadas, o grande “centrão político”) pode ser prejudicada pela citação que usei no início. Sobretudo pelo seu autor, acusado de uma deriva para a direita, afastando-se do centro que era mais do agrado do seu antecessor. Já antes escrevi sobre a personagem que agora é primeiro-ministro, manifestando a minha antipatia pessoal pela pessoa em causa. O que me deixa mais à vontade para avançar com a análise.
 
Podemos desconfiar de tudo o que Santana Lopes diga ou queira fazer. O seu passado não é abonatório, não lhe permitindo granjear um capital de confiança. Os mais cépticos podem torcer o nariz à citação que retirei do discurso de Santana Lopes. Podem dizer que é mais uma manobra de sedução para tingir a desconfiança que foi sendo acumulada ao longo das semanas de impasse criadas pelo presidente da república. Podem argumentar que é apenas uma manobra comunicacional para afastar os fantasmas da deriva para a direita, para que as pessoas não fiquem assustadas com o cenário dantesco que certas personalidades de esquerda ergueram, avisando que a democracia corria sérios riscos. 
  
Se é ou não uma simples manobra retórica para apaziguar os ânimos, só o tempo o dirá. Teremos que deixar escoar o tempo para comprovar se Santana Lopes está a governar em consonância com os poderosos interesses de poucos e contra os interesses dos mais carenciados. O que fica é a mensagem vertida nas palavras. E aí é indesmentível uma mensagem que envia claros sinais de sedução às pessoas inspiradas pelos valores tradicionalmente associados à esquerda. É este, pelo menos, o sentir que extravasa de palavras que sentenciam a defesa de interesses dos mais pobres em detrimento dos interesses dos mais ricos. Esta é uma retórica que se rotula claramente com a esquerda.
 
Será este mais um sinal do afamado populismo de Santana Lopes? Se por populismo se entende uma linha de acção sem fio condutor ideológico, um conjunto de medidas desgarradas apenas com o condão de cativar a fidelidade do eleitorado, sem qualquer análise cuidada do impacto futuro de tais medidas – então parece que esta declaração do novo primeiro-ministro é uma manifestação exuberante de populismo. Ao mesmo tempo apetece perguntar o seguinte: e a conduta de sindicatos, que se afirmam defensores dos interesses dos trabalhadores e depois fazem reivindicações sem sentido, que apenas teriam como consequência (se fossem atendidas) um aumento exponencial do desemprego – isto não é populismo? E a postura dos socialistas, que sempre defenderam a violação da disciplina orçamental (quem sabe se para lavar a face do descontrolo orçamental em que mergulharam o país), contra os compromissos assumidos na União Europeia – isto não é populismo?
 
Sou céptico em relação ao fenómeno político, como é sabido. Paradoxalmente mantenho um interesse – diria quase mórbido – nestas movimentações. Nem que seja para consolidar o meu cepticismo. E chegar à conclusão que a classe política, sem excepções, é composta por enganadores que distorcem a mensagem enviada para o público. Vale tudo, desde que os meios justifiquem os fins (a captura de votos, a ascensão ou a manutenção no poder).
 
Se existe crise, ela não é conjuntural ou momentânea, como muitos pretendem demonstrar. Essa crise é bem mais profunda, vem de trás, afecta toda a classe política e inquina o sistema em que vivemos. Nada é genuíno, a artificialidade irrompe a todo o momento, governa-se (e faz-se oposição) com base em pressupostos que se afastam da realidade. Eis a política como realidade virtual.

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