17.5.05

O complot das multinacionais agro-alimentares

Vejo notícia de um colóquio sobre obesidade infantil. Entre nós, calcula-se que uma em cada três crianças tem excesso de peso. Uma das especialistas ouvidas profetiza que, por causa da obesidade, estas crianças vão ficar com problemas crónicos de que não se vão desprender. Vão morrer mais cedo do que as gerações antecedentes.

Com o habitual tom de quem gosta de surgir como profeta da desgraça, de braço dado com o papel de moralista de serviço, foram ouvidas três senhoras a dissertar sobre o mal e sobre o culpado. Aliás, mais do culpado do que do mal. O dedo ergue-se contra a comida que tanto atrai as crianças, o império do fast food, dos produtos alimentares fabricados pelas multinacionais do ramo e que, pelas avultadas somas gastas em publicidade, captam as preferências dos jovens alienados.

Uma das senhoras era Isabel do Carmo, apresentada como endocrinologista (mas também podia ser apresentada como figura condecorada pelo presidente da república no último 10 de Junho pelos incalculáveis serviços prestados à causa da liberdade…entre os quais ter pertencido às brigadas terroristas do PRP). Falou com pose de especialista, mas não resistiu à tentação de acusar os suspeitos do costume: da sua boca vieram palavras de censura contra os cereais que as crianças comem ao pequeno-almoço – carregados de açúcar, sentenciou – contra os McDonalds (com acentuação no “a” a seguir ao “n”), contra os Bolycao, etc. Depois ouviu-se testemunho de uma senhora sueca: que no seu país a publicidade aos produtos alimentares que carregam as criancinhas com matérias gordurosas traz sempre um aviso dos malefícios para a saúde das ditas cujas. A santa trindade ficou completa com as palavras avisadas da representante da DECO. Esta senhora também percorreu a via-sacra dos queixumes habituais: a culpa é da indústria alimentar, que apenas olha aos lucros e não mostra preocupação com os danos que os seus produtos causam nas crianças.

Estes moralistas de serviço causam-me espécie. Pela postura de superioridade que exibem, do alto do seus supostos conhecimentos. Aparecem como inestimáveis servidores do “interesse público” (essa coisa vaga…), denunciando energicamente as maquinações das empresas que querem meter o público em caixões antes do tempo. Temos que lhes agradecer: se não fossem eles, éramos corroídos por perversos hábitos de consumo. Teríamos a morte anunciada para mais cedo do que projectamos. As DECO e quejandos deviam ser reconhecidas como sagradas vacas indianas.

Mas há o reverso da medalha. Os trejeitos inquisitoriais soam a intromissões desmesuradas na esfera de cada um. Talvez pensem que as criancinhas, por ausência de livre arbítrio, são os alvos preferenciais das malditas multinacionais agro-alimentares, por serem manipuláveis com facilidade. Esquecem-se que as criancinhas têm pais, eles sim os responsáveis pela educação dos filhos. Que se saiba, ninguém endossou procuração às DECO e quejandas para se substituírem aos pais na educação (alimentar) dos filhos. E, no entanto, os activistas do moralismo surgem de espada desembainhada contra os inconfessáveis interesses das diabólicas empresas que enxameiam o mercado com as porcarias que anunciam a morte precoce dos jovens de hoje. Como se quisessem ser os pais ausentes, ou ignorantes, que deixam as criancinhas comer aquelas porcarias.

Enquanto vivermos num mundo em que as opções individuais são desrespeitadas, porque entram em conflito com a verdade tida como necessariamente boa, o terreno fertiliza-se para organizações do género, para posturas impertinentes como as relatadas. E continuamos imersos num conto diabólico, em que as multinacionais são o inimigo a abater. Como se fosse verdade que elas elaboram géneros alimentícios que são uma espécie de veneno encapotado que há-de ceifar muitas vidas antes do tempo. É uma retórica cansativa: primeiro, os discursos do que se deve fazer para levar uma vida saudável, numa espécie de “fascismo higiénico” que nos cerca por todos os lados de forma asfixiante; segundo, a semântica do combate às empresas multinacionais, que preferem o lucro à vida saudável dos consumidores. Esquecendo-se que elas vivem da fidelização dos consumidores, e que não é de esperar que os hábitos de consumo se transmitam de geração em geração se a geração anterior for causticada pelos alimentos que acabou de ingerir.

É a lógica da quadratura do círculo no seu esplendor. Com adeptos em crescendo.

Sem comentários: