3.5.05

Os novos bufos

No tempo da ditadura estava instalada a cultura da delação. Era assim que os opositores do regime davam com os ossos na cadeia e se sujeitavam às torturas ignóbeis. Derrotada a ditadura, uma nova visão do mundo. No discurso oficial está presente a recordação dos tenebrosos tempos do Estado Novo. Relembra-se a ausência de liberdade de expressão, as perseguições políticas, o clima de terror social com a desconfiança sempre ao virar da esquina. Na retórica “anti-fascista”, ergue-se o dedo aos bufos que sopravam aos ouvidos dos facínoras polícias da PIDE os segredos que denunciavam quem ousava falar contra o regime. Hoje as criancinhas são ensinadas que bufo é das piores coisas que um cidadão decente pode ser. Vestígios do “fascismo” que temos que combater para sempre (mesmo que as ameaças do “fascismo” não passem de fantasmas que ensombram estas mentes desorientadas).

Agora somos convidados a ser bufos de novo. Não ao serviço de uma qualquer polícia política. O convite à delação é feito em nome dos superiores interesses de todos nós, ou seja, do fisco. Permanece a mania que as contas públicas se equilibram apenas com mais receitas embolsadas pelos cofres do Estado; continua o tabu do outro lado do orçamento: assegura-se que uma fatia significativa dos gastos do Estado é inamovível. É por isso que levamos com manobras sucessivas de reengenharia financeira para arrecadar mais receita. Como se insiste que há muita fuga aos impostos, vinga a ideia de que a prioridade é o combate aos que ousam escapar a esta obrigação social.

A derradeira novidade tem laivos de uma imaginação febril. Dos zeloso burocratas que tiram da cartola os coelhos mais mirabolantes para impedir que os contribuintes não paguem impostos. Agora os guardiães dos impostos lembraram-se de dirigir a sua ira contra as empresas que organizam festas de casamento. Se calhar a imaginação febril guindou-os à seguinte conclusão: o combate à fraude fiscal daquelas empresas será suficiente para enxugar as contas públicas. Será então tempo para dizer adeus aos apertos orçamentais motivados pelo terrífico Pacto de Estabilidade e Crescimento. A luz anuncia-se ao fundo do túnel: quando aquelas empresas pagarem os impostos a que se furtaram, as contas públicas ficam equilibradas. Dir-se-ia que aquelas empresas devem representar uma parcela importante da economia subterrânea que desvia recursos dos cofres do Estado...

Pena que o método dos censores sociais (os guardiães do fisco) seja duvidoso. Decidiram enviar inquéritos a quem se tenha casado nos últimos tempos. Para averiguar quanto pagaram pelo serviço que a empresa de eventos lhes prestou na boda. Para depois fazer as contas de merceeiro e concluir que aquelas empresas fugiram aos impostos. No fundo, somos convidados a fazer de bufos – nesta adaptação moderna, de “bufos do fisco”. Desdizendo a cultura oficial que está sempre disposta a relembrar os malefícios do “fascismo”: se é verdade que ser bufo no Estado Novo é motivo de crítica áspera nos tempos que correm, porque havemos de ser complacentes com este pedido do fisco que nos quer transformar em bufos ao seu serviço? Como se tivéssemos a obrigação de delatar; como se tivéssemos a obrigação de fazer o serviço que é exigido ao fisco.

Estou a adivinhar os moralistas de serviço a anuírem na função, dizendo que se trata de uma obrigação inerente à nossa convivência em sociedade. Pagar impostos é o preço de fazermos parte de um colectivo chamado país, chamado Portugal. Quem foge a este imperativo deve ser denunciado. De outra forma, dá-se a iniquidade de uns pagarem os impostos e de outros, os que fogem, tirarem o mesmo partido dos serviços prestados pelo Estado, sem para eles contribuírem. Ora essa argumentação funciona em sentido contrário. Explico-me: quem me dera poder fugir aos impostos! Irresponsabilidade? Não, apenas salutar inveja de quem consegue fugir, adicionada a uma genética alergia a tudo o que signifique o roubo à propriedade privada que dá pelo nome de impostos.

Desconheço se vou receber o inquérito do fisco. Sei que de mim a administração fiscal não leva informação nenhuma. Porque é feio, muito feio, ser bufo!

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