9.5.05

Quem anda à chuva molha-se: inocentes cigarrinhos de haxixe no Dubai

É grande o alarido por causa de um cineasta que se fez acompanhar até ao Dubai de uns inócuos cigarros de haxixe. Na deslavada sangra de lágrimas das habituais carpideiras, montou-se o estendal da comiseração. A campanha está aí, apelando à solidariedade colectiva em relação a Ivo Ferreira, preso no Dubai, em condições sub-humanas. “Apenas” por uns inocentes cigarros de haxixe, o concidadão presta-se ao tratamento humilhante dado pelo sistema judicial daquele país árabe. O problema é que aquele “apenas” é mais do que um pormenor. É a manifestação de um etnocentrismo que nós, europeus, temos dificuldade em atirar para trás das costas.

Por mais do que uma vez já aqui manifestei a minha posição em relação às drogas. Deviam ser todas legalizadas – e quando digo todas, digo mesmo todas, das mais leves às mais duras, incluindo as sintéticas. Mas defendo esta posição no contexto em que vivemos, no enquadramento sociológico e cultural que nos envolve. Quando defendo esta posição extremada (admito-o), faço-o por sentir que a sociedade se devia libertar de preconceitos que a levam a censurar o consumo de estupefacientes. Quando é tolerante com o consumo de outras substâncias legais que podem levar a estados de dependência tão profundos como as drogas que estão criminalizadas.

Por isso estou à vontade para lamentar o ruído, a vaga de fundo que se ergueu à laia de amofinação colectiva por um patrício que deu com os costados numa cadeia de um país tão longínquo. À vontade por defender a legalização das drogas, mas com a sensatez de reconhecer que outros países, com hábitos bem diferentes, fruto de um contexto cultural e religioso que está nos antípodas do nosso, possam ter uma posição mais rígida. E quem os pode censurar por perseguirem de forma tão dura o consumo de qualquer tipo de droga, mesmo que seja a posse de uns simples cigarros de haxixe? Dirão os incrédulos que por cá o haxixe vive no limbo da lei: será crime o tráfico, dificilmente será criminalizado o consumo. E, portanto, é inadmissível que um país ouse descer o duro braço da lei sobre quem se faz acompanhar por meia dúzia de cigarros de haxixe.

Este é o erro dos que, sem darem conta, são apanhados na armadilha do etnocentrismo. Se queremos que as outras civilizações respeitem os nossos hábitos, temos que respeitar a sua cultura. Somos incapazes de o fazer devido ao legado da tradição europeia de colonização. Quisemos levar a civilização aos bárbaros que colonizámos. Mas estes bárbaros não estavam na orfandade civilizacional. Tinham a sua cultura, os seus hábitos, a sua religião. Tentar avaliar a superioridade cultural de uns em relação aos outros é um terreno pantanoso com as consequências que ficam à mostra: o choque de civilizações – de que falava Samuel Huntington –, o fermento para os conflitos que se sucedem à era da guerra-fria.

Ivo Ferreira foi em digressão até ao Dubai. Devia saber que aí o consumo de qualquer droga é crime, e devia saber que é combatido de forma implacável. Se não sabia, que se informasse. Na sua qualidade de cineasta, não é crível que seja pessoa desinformada do que se passa no mundo. Qualquer alma com os olhos abertos sabe que os países árabes são pouco contemplativos com o consumo de qualquer tipo de estupefaciente. Ora, Ivo Ferreira ou é estúpido ou pisou a linha do risco. Ao fazê-lo, devia assumir as consequências dos seus actos. E não a encenação melodramática montada, com a descrição das condições em que foi detido, com a revelação da falta de garantias de imparcialidade do sistema judicial do Dubai.

Nada disso me interessa. Quando vamos a um país devemos ter o cuidado de recolher informações sobre o que não devemos fazer, para não ferir os usos e costumes locais, para não cairmos em infracção por actos que são legais no nosso país. Se pisamos o risco, e se o fazemos com consciência do risco, temos que assumir a responsabilidade do comportamento. O que Ivo Ferreira fez, com a ladainha ecoada pela comunicação social, apelando à intervenção do governo, é lamentável. É a imagem de um adolescente irresponsável que sabe que pode fazer o que lhe apetecer, porque na hora do aperto há-de surgir a figura paternal (aqui na “pessoa” do governo) para limpar as asneiras que andou a cometer.

O que devia fazer um governo responsável? Nada. Deixar Ivo Ferreira ser julgado de acordo com as leis do Dubai. Dirão os aflitos com as condições miseráveis em que se encontra o cineasta: mas isso não é votar Ivo Ferreira ao abandono? Direi que não, que é arrepiar caminho à responsabilização individual pelos actos de cada um.

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