10.5.05

Os penachos que nobilitam

Já em tempos escrevi sobre a mania de pavonear o Dr. que há dentro de nós. Hoje vou estender o exercício para tentar perceber o que leva muitos dos meus colegas a ostentar a imponência do “Prof. Dr.”. Isto vem a propósito de algo de descobri nas páginas pessoais que os professores da universidade são convidados a inserir na Internet. A universidade fornece um guia que orienta, passo a passo, a construção da webpage. O primeiro campo que temos que preencher traz a seguinte informação: “nome, incluindo títulos honoríficos”.

Os coleguinhas que já cumpriram a tarefa não se coibiram de colocar o “Prof. Dr.” antes do nome (ou, nalguns casos, “PhD” à frente do nome; ou mesmo “Mestre”, para os que estão ainda no percurso que os há-de levar ao doutoramento). Não conseguindo resistir ao apelo de quem elaborou o guia de orientação da webpage, lá colocaram, com todo o garbo, o “título honorífico” que tanto os enobrece. Numa pesquisa rápida, a esmagadora maioria dos doutorados com página pessoal apresenta-se como “Prof. Dr.”. A proporção anda à volta dos 75%.

No afã de mostrar a vaidade de quem possui o título académico que, para consumo doméstico, é em muitos casos o apogeu da carreira (enquanto em Inglaterra, o expoente do meio universitário, o doutoramento apenas marca o início da carreira), há casos absurdos. Como o desta colega, que nem sequer se apercebeu que antes do seu nome aparece um patético “Professora Doutoura” (sic)! Será uma “douta toura”? Já não bastava a ousadia de colocar o título por extenso, ignorando que a titulação está reservada aos que atingem o topo da carreira – os professores catedráticos (o que não é o caso desta recém-doutorada…). E depois há este caso, que teve a sensatez de escapar ao alçapão do título nobilitante antes do nome, mas borrou a pintura com a caricata fotografia que inseriu na página, com a ridícula toga que tresanda ao que de mais bafiento têm os rituais académicos. Não está lá o título, mas está a veste do lente que mostra toda a sua altivez e exibe a pose professoral de quem se apresenta…como “Prof. Dr.”!

Sei que um grau académico – qualquer que seja – exige sacrifícios pessoais. Um desafio, um cabo tormentoso que foi dobrado. Daí que certas pessoas gostem de ser reconhecidas pelo feito pessoal. Uma forma de insuflar as pequenas vaidades que fermentam o ego que se quer libertar das suas amarras. Sei que no mundo académico lusitano os seus intérpretes gostam de se esbofetear reciprocamente com os títulos que possuem. É um estranho ritual: as pessoas tratam-se por doutor, a deferência necessária e obrigatória para elevar o respeito mútuo ao altar que as pessoas do meio acham que merecem. Sem darem conta do ridículo em que se embrulham.

O provincianismo luso encontra terreno fértil nesta mania a que os académicos se entregam. No estrangeiro, as pessoas do meio académico colocam os títulos de lado e insistem num tratamento informal (falo pelo país que melhor conheço, o Reino Unido; ou pelo ambiente dos congressos em que tenho participado em diversos países. No entanto, a veia nobilitante dos títulos também é dominante na Alemanha e em Espanha, por exemplo).

Contam-me histórias de colegas que ao chegarem ao patamar de “Prof. Dr.” exigem tratamento adequado dos funcionários administrativos. Como se tivessem a necessidade de se lembrarem a si mesmos, a toda a hora, que o são. Parece que têm dúvidas do mérito da façanha que foi (para eles) chegar aos píncaros de um doutoramento. Eis outra dimensão do nosso provincianismo: de como vemos no grau o púlpito de um trajecto, como se mais nada houvesse para conquistar. Enquistam-se à sombra do penacho adquirido, muitas vezes ao fim de uma interminável maratona. Como se fazer um doutoramento fosse uma tarefa homérica.

As falsas modéstias são, muitas vezes, a maior forma de vaidade. Nada disto conflitua com a discrição de uns poucos, que querem antagonizar com os exageros que muitos cometem quando acenam com vigor o título adquirido. Na estranheza do título anteceder o nome, como se houvesse uma alteração da identidade da pessoa. Fica a proposta, para dar cumprimento às vaidades ocas que por aí andam à solta: porque não exigir da burocracia que nos asfixia que os títulos surjam no bilhete de identidade? Se muitos insistem em dar-se a conhecer como “Prof. Dr.” (seguido do nome), obrigue-se o registo civil a averbar essas alterações no nome de quem as gosta de ostentar.

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