6.5.05

O desconfiado

Está sempre a olhar por trás do ombro, na suspeita de que alguém o vai apunhalar pelas costas. Se pudesse, gostava que a nuca tivesse um olho incorporado. Porque ele sabe que as coisas se passam nas suas costas. Vendo em si um corajoso de primeira água, acredita que ninguém tem a ousadia de o enfrentar olhos nos olhos, de fazer as trapaças nas suas barbas. Por isso anda um passo à frente com a mira afinada para trás. Desconfia. De tudo, de todos. Se calhar, até mesmo dele desconfia.

Atormentado pelo negrume do mundo, o desconfiado rezinga. Para ele, o mundo é um universo composto de pessoas que se querem enganar a toda a hora. É como se todos os humanos nascessem possuídos de uma desconfiança genética. Como se nascêssemos para dar a facada nas costas dos que convivem connosco, dos que circunstancialmente entram em contacto connosco. Para evitar que seja a outra pessoa a tirar partido do embuste, o desconfiado entra à defesa. Metódico, sempre de pé atrás, na certeza de que pode ser enganado por outrem. Para que isto não suceda, toma a dianteira: a iniciativa é sua, manobra os cordelinhos e, em vez de ser o alvo da pérfida trapaça, é ele o trapaceiro.

O desconfiado desconfia porque sabe que ninguém pode confiar nele. Ao rever-se no espelho, reflecte a sua imagem nos que o rodeiam. Como está habituado aos logros que levam a palma na arte de ludibriar o próximo, concebe as outras pessoas à sua imagem. E nada é genuíno: sentimentos frouxos, falsificados, pontuados pela dissimulação. Os sorrisos amarelos são a arte maior de uma cosmética simpatia, uma aparência para levar no engodo os ingénuos que acreditam na sua boa-fé. Os actos são preconcebidos, carregados de manobras sinuosas que fogem de uma linha recta. Tudo soa a falsidade. As palavras têm a ressonância das mentiras ditas por quem mente com todos os dentes que tem e consegue passar a mentira como a verdade mais espontânea e credível.

Mas o desconfiado vive agrilhoado na tormenta de si mesmo. Abraseado pela desconfiança, vive no permanente suplício do assalto dos seus fantasmas. Ele é vítima de conspirações que só ele consegue imaginar. O mundo está contra si. Todos estão contra si, numa vitimização absurda que nasce dos complexos que tem de si mesmo e que projecta nos outros – sem querer saber se os outros, por poderem ser diferentes, não embarcam na desconfiança metódica, não alimentam o comportamento farsante de quem desconfia.

À noite, o desconfiado deita-se com os seus fantasmas. Dir-se-ia que antes de repousar a cabeça no travesseiro ergue os lençóis, não vá um inimigo encontrar-se escondido numa dobra dos lençóis, preparado para desferir a facada fatal. Deita-se, então, mais sossegado. O sono traz-lhe o bramido dos fantasmas que lhe povoam o subconsciente. Mesmo os sonhos são terreno flagelado. Dorme agitado, a sonhar o dia que há-de vir, as manobras periclitantes de quem o quer enganar, naquilo que há-de fazer para se antecipar a esses desígnios.

O desconfiado é a expressão perversa do individualista. Aliás, um falso individualista, que necessita de conviver com os outros porque a arte de os aldrabar é o oxigénio que dá sentido à sua vida. Sem os outros, o desconfiado é um alienado de si mesmo, um deslocado do mundo. Ao situar-se no epicentro de si mesmo, ao fazer dos outros satélites da sua encenação ludibriante, renega o que há de genuíno no individualismo benigno: valorizar o eu, na crença de que só uma interacção pacífica e voluntária com os outros eus faz mover o mundo com harmonia.

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