Está quase! A terminar o sofrimento de não-sei-quantos-milhões-de-adeptos do “grandioso clube” que há vários anos atravessa a secura de vitórias que colocou aquela “massa associativa” à beira do desespero. Está quase: só mais um pequeno passo e a turba que no sábado festejou, excitada, irá celebrar com ânimo redobrado.
Na memória retenho a imagem de adeptos aos saltos, de todas as idades, numa comunhão ecuménica sem olhar a sexo, raça, credo e condição social. Saltavam, extasiados com o perfume da vitória, entoando “Ben-fi-ca, Ben-fi-ca, Ben-fi-ca”, ou a variante urbanizada “SLB, SLB, SLB”. Ainda estou na digestão de uma imagem medonha: um idoso que também embarcava no ritual dos pulinhos, mostrando a desdentada dentição, espumando o refrão colectivo, à beira da apoplexia.
Agora está-se quase a cumprir o desígnio nacional: a “instituição desportiva” está nos preparativos para envergar as faixas de campeão nacional. O jejum será, finalmente, varrido para o baú das longas recordações. E é um desígnio nacional, por certo: afastar este grandioso clube das vitórias é anti-democrático, pois – é bom ter sempre em mente este dado – muitos-milhões-de-adeptos abrigam-se na asa vermelha da águia benfiquista. O cenário compôs-se: agora que os líderes dos cinco partidos do parlamento são confessados adeptos do Benfica, não há razões para que não se satisfaça o desígnio nacional. É a democracia que se cumpre.
E também se dá cumprimento às profecias de Vieira, essa personagem que, liderando a agremiação, reanimou as massas que padeciam no deserto das vitórias. Foi o grande Vieira que anunciou a certeza de que o seu clube iria ser campeão. Foi Vieira, esse afamado economista com cartel internacional, que prenunciou: o país irá sair da crise económica assim o Benfica seja campeão. Não apresentou estudos que comprovem esta profecia. O que também não interessa. A vontade agiganta-se para vergastar os obstáculos que surgem pela frente. E se a confiança dos não-sei-quantos-milhões-de-adeptos vai atingir os píncaros com o banquete da vitória, decrete-se que para o futuro os campeonatos sejam disputados do segundo lugar para baixo.
Vieira, afinal, só tem a quarta classe. Que alguém lhe tenha sussurrado ao ouvido que uma vitória do Benfica seria o tónico esperado para a economia nacional, ou que ele tenha tido esse sonho, apenas questões de pormenor. Estamos todos à espera que a profecia se cumpra: depois de acertar no êxito do clube a que preside, espera-se que a saga adivinhatória prossiga, que a economia dobre o cabo das tormentas. O engenheiro primeiro-ministro ficaria eternamente agradecido, numa coligação (mais uma) entre o futebol e a política. E seria a primeira vez que alguém com a quarta classe se arriscava a ganhar o prémio Nobel da economia.
Talvez pelas limitadas habilitações escolares, as capacidades intelectuais do grande timoneiro da nação benfiquista estão na proporção inversa da multidão que enverga cachecóis vermelhos. Sem perceber a gaffe, Vieira tão depressa prenuncia a aceleração estonteante da economia nacional como diz, logo a seguir, que o país “vai parar”com a vitória do Benfica. Em que ficamos? Como pode um “país parado” inverter o ciclo e inscrever-se na rota da prosperidade económica?
Não interessa dar resposta à interrogação. Porque Vieira disse, Vieira tem razão, escudado por não-sei-quantos-milhões-de-adeptos do “grandioso clube”. As verdades impõem-se, sem base racional. Apenas com a crença das identificações colectivas que congregam vontades. Será, quando muito, um “wishful thinking”, uma verborreia sem sentido, palavreado oco vindo de uma cabeça sem substância intelectual. Ao mesmo tempo, a expressão de como estamos mergulhados no desnorte total: porque acredito que o “país” vá mesmo parar quando a “nação benfiquista”, por fim, estiver a saborear as delícias da vitória. Como se os problemas do país ficassem anestesiados pelo feito futebolístico.
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