20.5.05

Cunhas do nacional-porreirismo

Tem dado que falar o despacho de três ministros do anterior governo que possibilitou o abate de sobreiros numa herdade ribatejana, favorecendo um projecto turístico de uma empresa ligada ao Banco Espírito Santo. Pouco me interessa discutir o acerto de contas político que a história sugere. Parece vingança de uma justiça instrumentalizada pelo poder político: no consulado do anterior governo, foram socialistas que estiveram com a justiça à perna; agora que a casaca política mudou, a justiça virou a bússola para personagens do CDS e do PSD. Se isto não é justiça instrumentalizada, é pelo menos uma notável coincidência.

Não é isso que me interessa. Antes, sublinhar como somos corroídos pelo estigma da mediocridade que nos leva a confundir interesses pessoais com interesses que devemos prosseguir enquanto titulares de cargos públicos. Mais um motivo para a recusa em contribuir para o peditório em curso: o grande bloco central (que em nós manda desde que a democracia formal por cá se instalou) está cheio de pecados. E quando vejo laranjas a criticarem os rosinhas, e vice-versa, apenas consigo esboçar um sorriso de desdém: nessas críticas, o roto queixa-se do nu.

As conveniências pessoais contam muito, há que o admitir. Faz sentido que os indivíduos tenham interesses próprios, e que seja difícil desligar-se dessas motivações subjectivas quando tomam decisões. Mas os decisores podiam ser menos explícitos no atropelo dos interesses comuns que se julgava serem guardiães. Em vez disso, sucumbem às pressões de clientelas que lhe abanam com benfeitorias de variada espécie. Depois paira no ar a nódoa da corrupção – da pequena e da grande corrupção. Não há credibilidade que lhes valha, quando campeia a cumplicidade de interesses entre quem toma decisões na esfera pública e quem, no sector privado, delas beneficia. Até porque a confusão de papéis alimenta a perplexidade: quantos ontem foram ministros para hoje serem administradores de empresas que dependem de negócios com o Estado, para amanhã voltarem a deter o poder político?

Por entre a balbúrdia, instala-se o espírito do expediente, na tentativa de alcançar a todo o custo os fins. Nem que para isso seja necessário traficar influências, dar a palavra mágica que desbloqueia decisões, sabe-se lá a que preço. Desde as grandes negociatas até às mundanas situações que só envolvem a arraia-miúda, as palmadinhas nas costas, o “veja lá o que se pode fazer” enquanto se acena com a cenoura certa que faz mover o burro que tem a faca e o queijo nas mãos. Os que têm sorte, ou os conhecimentos no lugar certo, chegam à meta procurada. Os restantes têm que penar pelos corredores da burocracia, aturar funcionários desinteressados, que apenas se motivam quando os utentes engraxam a autoridade detida e sugerem compensações que gratificam os favores concedidos.

É o império do “factor C”. As cunhas certas no momento certo, e as decisões que nos são favoráveis surgem num ápice. Dando lugar a um sistema medíocre, em que a meritocracia está ausente. Premeia-se quem patrocina o tráfico de influências, emproando a autoridade daqueles que se prestam à duvidosa convivência de interesses. Não bastava o reino de expedientes em que tropeçamos a toda a hora, em todos os lugares. Estamos habituados a conviver com o pequeno tráfico de influências na administração pública. Para quem acredita nas virtudes da iniciativa privada – é o meu caso – ainda é mais lamentável que muitas empresas privadas sustentem as relações perversas do tráfico de influências. Elas são factores de resistência à mudança de mentalidades. Funcionam como uma roda dentada que dá alento a toda a viciosa engrenagem.

O rescaldo: o prémio da mediocridade anda de braço dado com as oportunidades que se vedam a quem tem mais valor – ou a necessidade dos valorosos se deixarem corromper pelos tortuosos caminhos do sistema, dançando ao sabor da música insidiosa dos compositores do tráfico de influências. A espinha dorsal é o derradeiro factor de resistência às tentações das cunhas do nacional-porreirismo. Enquanto se mantiver firme, o sossego de nos olharmos no espelho, pela manhã, e não ter vergonha da cara que vemos diante dos olhos.

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