Guterres levou a palma. Será o próximo comissário para os refugiados. O país, depois da exultação da vitória do Benfica, há tantos anos prometida, continua numa lua-de-mel consigo mesmo. Nada melhor para compensar a crise orçamental em que estamos mergulhados, que nos há-de levar o coiro e o cabelo. Antes imersos numa simulação do real, a festejar as pequenas coisas que não trazem o bem-estar que anda demorado. Há dias o Benfica; agora a taluda que saiu a Guterres. Tudo serve para engraxar o brio nacional. Como se o brio nacional alimentasse barrigas esfaimadas, inventasse empregos, ou trouxesse o que mais falta faz – o brio profissional.
As figuras gradas do regime já se apressaram a sentenciar: grande contentamento pela escolha de Guterres para um cargo internacional de tanta importância. Já veio ao de cima a verdade oficial a que todos temos direito: “os portugueses” não cabem em si de felicidade. “Os portugueses”. Todos? Não haverá lugar a vozes discordantes? Por serem dissonantes, serão menos portugueses? Há-de dar lugar a outro texto, esta mania dos políticos eleitos se arrogarem ao papel de porta-voz do reino, como se falassem em nome de todos nós. Pobre entendimento da democracia. Por terem sido levados ao altar do poder, logo se vêm investidos na iluminada prerrogativa de falarem em nome de todos. Como se todos se revissem na verdade oficial que se solta das suas palavras mecânicas.
Já antes escrevi sobre a possibilidade de Guterres ganhar a corrida para a sinecura. Agora que há a confirmação, e que Portugal passa lustro ao ego patriótico, umas palavras sobre o feito. Confesso que me encontro dividido nos sentimentos. Não o escondo: é uma excelente notícia. Não por ser “um dos nossos” que se gruda a cargo tão importante, como se o engenheiro levasse para Genebra um cadinho de cada português que estava, no seu íntimo, a puxar por ele. É boa nova porque exportamos o engenheiro daqui para fora. Melhor maneira para nos livrarmos dele não havia. Agora vai pregar a sua incompetência para outra freguesia. Sem que se perceba que a personagem conseguiu fugir outra vez, agora do desígnio que os seus companheiros de lides lhe tinham traçado – a candidatura à presidência da república. Fugiu, mais uma vez. Terá fugido da derrota certa.
Se o aplauso se faz ouvir porque a pessoa deixará de nos apoquentar, entristece-me a nomeação. Agora quem vai sentir o peso da sua incompetência são pessoas no limiar da sobrevivência humana, carentes de auxílio humanitário de urgência. Os refugiados terão que esperar pela boa conduta do comissário Guterres. É aqui que o horizonte se escurece. Habituado a fazer do diálogo o método de eleição, Guterres será ainda mais nódoa enquanto comissário para os refugiados. Enquanto os terríveis problemas humanos que atingem refugiados em massa se agravam, o engenheiro andará entretido a dialogar aqui, dialogar acolá, a levar o diálogo a um expoente máximo. Fazendo escola para o futuro: tanto diálogo terá expressão na morte dos desgraçados dos refugiados que estiverem à espera que Guterres os acudisse. (A menos que Guterres nada decida, e que as verdadeiras decisões sejam tomadas pelos funcionários da ACNUR).
Último pormenor que tem escapado a comentadores com as palmas das mãos gastas de tanto aplaudir: na semana em que se soube que o défice orçamental está num descalabro, nada melhor do que servir tão importante cargo ao primeiro responsável pelo descarrilamento das contas públicas. Vivemos num mundo em que compensa ser medíocre. Talvez por serem medíocres os que se assenhoreiam do poder, e que não resistem à tentação de escolher outros medíocres para ocupar todo o terreno das decisões.
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