Pela enésima vez, uma cirurgia. Pela enésima vez, a angústia da entrada num bloco operatório, um sono profundo que vale como um hiato na tua vida, como se ela ficasse suspensa por delicados fios de cordel manobrados pelos cirurgiões. Uma vez mais, a dor insuportável da convalescença. Tudo com a coragem inigualável que de ti emerge, mais a força que ainda consegues descobrir no mais recôndito de ti para animares os que sofrem pelo teu sofrimento.
Há dias, quando soubeste que ias ser operado, brincava contigo: “é mais uma para abrilhantar o teu vasto curriculum clínico”. Foi o que se soltou, na espontaneidade de quem quer fazer humor com algo que se presta a tudo menos ao humor. Agora que estás na cama do hospital, ainda sem sequer haver a sensibilidade para suportares as dores das entranhas feridas por bisturis, tens tempo para repousar, por uns breves instantes que seja, da longa estrada penosa que te calhou em sorte. Os olhos cerrados escondem a tranquilidade que a medicina te reservou nas horas seguintes à cirurgia terminada. Repousas, no descanso de um guerreiro que tem sabido lutar com as armas que tem e com as que descobre na força indómita de viver.
Olho para trás, para a sucessão de percalços que se apossaram da tua saúde. Deixo-me invadir por uma sensação de revolta. Sem ter a mesma coragem que tu tens para dobrar as tormentas indesejadas, fico possuído por um sentimento exasperado de injustiça. Sem perceber a distribuição do sofrimento humano: como alguns são causticados sem dó, uma e outra vez mais, e outros passam incólumes pela dor. Sei que a tua fé é o alento que encontras para ver nas agruras da dor o lado positivo de algo que tem que ser derrotado. Nisso, és a maior lição de vida. Do teu optimismo contagiante perpassa a imagem que a vida é o bem mais belo que podemos ter, e que vale a pena lutar com todas as forças para dobrar as sórdidas esquinas que atraiçoam a linearidade da vida.
Há dias diziam-me que és um exemplo de vida, pela coragem com que encaras o infortúnio, a tua força irreprimível para vencer as nuvens negras que ocasionalmente se agigantam diante dos teus olhos. É verdade: és um lutador indómito, uma lição para retirarmos da vida tudo o que ela oferece, até ao tutano. Quando paro para pensar, em ocasiões sofridas como esta, e me deixo acometer pelo inevitável egoísmo de quem se consome por te ver sofrer, é o arrependimento que se apodera de mim. Não será a maior homenagem que mereces, essa de penar pelos cantos, lágrima furtiva ao canto do olho, dilacerado pelo sofrimento que te consome. De nada vale este padecimento pessoal, fracção insignificante da dor que te assalta, da dor que, lancinante, te deixa à beira do desespero.
Perdoa-me se não consigo descobrir a mesma força interior. Não há como encontrar antídoto para os caminhos tortuosos que têm minado a tua vida. Nem quero franquear os umbrais da metafísica, ou pisar os domínios do ininteligível que explicam as distracções do destino. A dor é-te reservada, porque diz a natureza que nestas coisas não há como dividir o sofrimento físico pelos que te rodeiam. Sabes que o sofrimento mental também nos toca de perto, como extensão da dor que te invade, na impaciência de ver terminado o rol infindável de desencontros com os hospitais. E sei que o que vou dizer não te traz conforto, nem diminui a dor que sentes nestas horas sofridas. Cada um se apazigua com as suas mágoas. A minha é sentir uma terrível injustiça ao trazer as memórias do teu curriculum clínico, esse rol alongado que tanto gostarias de apagar do teu passado.
Da cama do hospital, a certeza que continuas a lutar. Como sempre o fizeste, na mestria que é conhecida. Estou certo que quando despertares da anestesia provocada serás o mesmo de antes, a mesma força bruta que exibe com sofreguidão a vontade de viver pela derrota das adversidades semeadas no percurso. E nisso sabes que estou, incondicional, ao teu lado!
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