13.5.05

Como se faltasse qualquer coisa

O computador portátil entrou em colapso. Ecrã enegrecido, nem para trás nem para a frente. O pânico começou a tomar conta de mim. Para não produzir mais males, levei o portátil ao especialista. Diagnóstico: falha grave de hardware. Só lá para terça-feira, na melhor das hipóteses, o computador regressa ao dono.

É inquietante como podemos ficar tão dependentes de uma máquina. São as rotinas que se instalam, determinados rituais que se cumprem, dia após dia, que se embebem nos gestos, nos hábitos que causam um estado de dependência tão acentuado que nem tomamos conta da sua adequada percepção. Não há dúvida que as potencialidades oferecidas pela informática são um utensílio valioso – como ferramenta de trabalho, como instrumento de divertimento, como veículo de informação. E há um sentido bem afirmativo na expressão “computador pessoal”. É uma intimidade que cresce nas horas que o proprietário passa agarrado ao seu computador. Mais ainda quando o computador é portátil, pela flexibilidade de o transportar de um lado para o outro. Sendo algo de pessoal, melhor se entende que o desligar temporário do vínculo acarrete danos irreparáveis.

Só estou sem o portátil há vinte e quatro horas. E sinto que uma parte de mim ficou com ele, naquele ponto de assistência técnica que o vai reparar. Não só porque muita informação que estava no disco danificado se perdeu irremediavelmente (por falta de cuidado do dono, que não fez o backup – outro vocábulo técnico que entrou no léxico de quem vive dependente dos favores da informática). Mais importante, por sentir que o computador funciona como um prolongamento de mim mesmo.

De tal forma que um dia destes dei comigo a pensar no seguinte: são poucos os jornais que leio, porque consulto a informação na Internet; o correio electrónico trouxe o milagre das mensagens lidas no instante que se consome, sem ter que esperar dias a fio pela chegada do correio postal; e as canetas acumulam-se num receptáculo próprio, escondido num canto da secretária, pois agora é raro manuscrever. O teclado é o prolongamento do braço que escreve as palavras que vão aparecendo, tácteis, no ecrã do computador. Por todas as razões, há um pedaço dos costumados hábitos que ficou em letargia com o adormecimento do portátil.

É a desconfortável sensação de desorientação que se apodera. Acho-me como um viajante perdido numa encruzilhada de caminhos, desprovido de mapa que forneça as coordenadas. Sou incapaz de seguir para a estrada, em viagem, sem ir munido dos mapas que esclareçam as dúvidas acerca do melhor caminho a tomar. O desnorte da ausência dos mapas está para o viajante como a perda de sentidos para quem alicerçou uma intimidade com o computador dormente.

Não sei se será um bom sintoma – estarmos tão presos aos caprichos de uma máquina que pode trazer surpresas desagradáveis quando menos se conta. O contraste entre as virtudes da informática e os caprichos dos computadores é um hiato difícil de entender. Porque afinal somos (os que estão nesta condição...) cada vez mais um prolongamento do computador, do teclado na ponta dos dedos que sobe braço acima e parece tomar conta da nossa vontade, do ecrã que consome a vista e parece hipnotizar as mentes.
É neste estado que me encontro: na desorientação que impera, achar-me o prolongamento do computador, e não que ele seja o prolongamento de mim mesmo. Como se o computador ganhasse vida própria e fosse o senhor dos meus humores. Diagnóstico que faz pensar: a entrega tão despudorada a uma máquina, quando enfim ela deixa de ser um instrumento que alimenta o bem-estar das pessoas para se transformar numa maquinação dos humanos que estendem a passadeira vermelha ao reino da informática.

1 comentário:

Rui disse...

Paulo, como percebo o que escreves!!!
Passo 12 horas por dia a trabalhar no computador. É realmente impressionante a dependência que temos.Ás vezes dou por mim a pensar: "- Como era possivel há uns anos atrás trabalhar sem computador, sem email, sem internet,!!". Mas o que é curioso é que era!!
Realmente hoje quando o computador avaria, é o equivalente à carga da caneta que arrebentava, sujando o papel onde escreviamos.A diferença é que existe sempre à mão uma caneta a mais para continuarmos. Já com o computador...
Abraço,
Rui