24.5.05

Golpe na auto-estima

Não, não tem a ver com o sentimento de pânico (será?) que assaltou o governo do Eng. Sócrates, ao saber que tem entre mãos um défice gigantesco de 6,83% do PIB. Não me refiro ao golpe nas promessas feitas durante a campanha eleitoral, destinadas ao banho-maria dada a crise orçamental que deve ser combatida. Vendo bem, este é um défice virtuoso: impedirá que muitas das promessas imbecis dos socialistas sejam concretizadas.

Não, não é o golpe na auto-estima nos comunistas e na esquerda caviar: um défice tão elevado, num contexto em que vingam as “hediondas” teses do “neo-liberalismo”, é um rude golpe na sua forma de ver a política. O camarada Jerónimo já exibiu a azia, ao acusar o governador do Banco de Portugal de se querer fazer passar pelo salvador da pátria – quando não passa de um simples lacaio do “neo-liberalismo” que vota os trabalhadores a uma opressão sem precedentes.

O golpe na auto-estima sentiu-o o escriba destas palavras. Num episódio que faz a ponte com a militância comunista de alguns que estão no seu direito de acreditar que o comunismo, na ortodoxia defendida pelos camaradas lusos, é o projecto perfeito para uma sociedade justa. Ontem, à entrada da universidade, estavam três jovens a distribuir panfletos. Quando entrei não dei atenção aos papéis. Pensei que fosse publicidade a uma das inumeráveis festas que os estudantes organizam em discotecas. Uns metros à frente dei conta que me tinha esquecido de algo no carro. Meia volta e saí da universidade, voltando a cruzar-me com os três jovens que prosseguiam a sua tarefa. Ao chegar ao carro percebi o conteúdo da papelada distribuída, ao reparar num panfleto que jazia no chão: propaganda da Juventude Comunista Portuguesa, aliciando os estudantes a ingressarem na estrutura. No regresso do carro, a derradeira vez que me cruzei com os jovens camaradas que não se cansavam de entregar a propaganda partidária. E de todas as vezes – três – que passei por eles, em nenhuma ocasião esboçaram a entrega do material à minha pessoa.

Estava exultante de contentamento por saber que não aparento ser cliente de eleição dos camaradas comunistas. Pensava com os meus botões: três vezes me cruzei com os abnegados jovens camaradas, três vezes vim de mãos a abanar. Feliz da vida, soube que eles olham para mim e não vêm um potencial comunista.

Na aula reparei que uma das alunas letãs, ao remexer nos seus papéis, deixou cair o panfleto da JCP. Como se desse o caso de ela não saber português, esclareci-a acerca do papel que lhe tinha sido entregue. Sabia que as três alunas da Letónia não simpatizam com a ideologia comunista. Têm razões de sobra, ou não tivesse a Letónia sido ocupada pelos invasores soviéticos durante mais de setenta anos, não tivessem elas escutado histórias tenebrosas dos tempos em que o comunismo era a ideologia reinante. Foi então que lhes contei, com orgulho, a experiência por que tinha passado minutos antes. Querendo passar a mensagem de que os jovens camaradas se tinham recusado a entregar-me um exemplar da propaganda. Rematando com a conclusão a que queria chegar: definitivamente, não tenho aspecto de comunista. Ao que uma das alunas letãs me disse, com uma sinceridade desarmante:

- Or probably you don’t look young…

Foi o golpe fatal na minha história gloriosa. Uma devastação moral. A aluna lembrou-me que os jovens camaradas estavam a angariar potenciais militantes para uma estrutura que é participada por jovens. Admite-o: não foste agraciado com a propaganda não por não teres ar de comunista, antes por não te enquadrares na faixa etária dos que podem fazer parte da JCP.

Regressa à terra. Lembra-te que estás mais próximo dos quarenta do que dos vinte palmilhados pelos teus alunos. Lembra-te que por mais que estejas agarrado à juventude que ficou para trás, por mais que te sintas jovem de espírito e de corpo, a idade não engana. Ilusões, leva-as o tempo. E por mais que te recuses a admitir que o tempo também passa por ti, os cabelos brancos que começam a aparecer, os anos que se dobram no calendário, a vertigem do ano de nascimento vertido no bilhete de identidade – tudo se encarrega de te recordar que a juventude pós-adolescente foi tempo que ficou para trás.

Amanha-te com uma compensadora imagem: a de que estarás a viver a segunda juventude (a que vem depois da juventude pós-adolescente)...

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