4.7.05

Live 8 e o mito da ajuda ao desenvolvimento

Vinte anos depois, Bob Geldof organizou outro mega-espactáculo destinado a arranjar fundos para os países mergulhados na pobreza. Não sei se percebi bem a intenção do evento: se arranjar verbas para que os países pobres as possam usar como instrumento de desenvolvimento; se despertar as boas consciências para um tema que, a espaços, emerge como prioridade, mas depressa cai num espesso esquecimento; se recuperar artistas mumificados pela passagem do tempo, para deleite de fãs de provecta idade que recuam aos tempos gastos da sua juventude; se dar o palco a políticos do sistema que, em bicos de pés, juram que a ajuda aos países pobres passou a ser a prioridade.

Começo pela hipótese do dinheiro angariado ser a miragem que se desfaz em realidade para países mortificados pela pobreza. Que ninguém acredite que os milhões recolhidos, por maior que tenha sido a generosidade dos doadores, são ajuda visível para os países carenciados. Os muitos milhões serão, isso assim, uma minúscula gota no oceano das necessidades destes países. Valerá a intenção, dirão os que depositam a sua fé em eventos do género para matar a pobreza. Aceite-se a intenção e registe-se a ingenuidade: daqui a vinte anos Geldof, ou um seu seguidor, organizará a terceira edição e, só então, as almas apoquentadas se poderão tranquilizar depois de terem feito o donativo. E desculpem-me a ousadia, até uma certa frieza: até que ponto os generosos doadores anónimos estão certos do acto de generosidade? Acreditam que esse acto, no somatório de milhões de actos idênticos, terá um efeito que se veja para os povos auxiliados, ou se será apenas um acto de apaziguamento das suas consciências?

Segunda hipótese: mais do que os recursos arrecadados, vale a mensagem que terá tocado bem fundo nos líderes mundiais, eles que são os maiores culpados da pobreza espalhada pelo mundo. Duas observações em contrário: primeira, o movimento de massas não foi arrasador ao ponto de levar os ditos políticos a mudar de atitude. Quando muito, terão estado atentos, e concordantes, com a mensagem no dia em que o Live 8 se espalhou por palcos de todo o mundo. No dia seguinte, tudo voltará ao normal, as prioridades serão outras, o subdesenvolvimento continuará esquecido algures a meio de uma meada de que se perde o rasto.

Em segundo lugar, a ideia de que o subdesenvolvimento dos pobres é culpa exclusiva dos países ricos. Em parte é verdade, mas por razões que não costumam ser sublinhadas: o forte apoio aos agricultores dos países ricos mata um dos maiores potenciais de riqueza dos países pobres. A hipocrisia dos países ricos é sobretudo esta, a de impedir que os pobres consigam vingar na sua competitividade natural no mercado internacional, só porque os agricultores nacionais (muito mais ricos) têm que continuar a ser protegidos.

Para além deste assunto eternamente esquecido, parece-me errado que a superação da pobreza imponha um contributo activo dos países ricos. Exige-se o perdão da dívida externa e que os países ricos transfiram recursos gordos para ajudar o desenvolvimento dos países pobres. Quem tudo isto exige esquece-se que os países pobres precisam é de quem os ajude a serem organizados; necessitam de banir a corrupção instalada, a chancela para que o magro pecúlio que chega a esses países engorde uma clientela que se serve do poder e constrói cleptocracias sem fim. É lamentável que o velho ditado chinês seja evitado quando se fala da ajuda aos países pobres: em vez de lhes dar a cana de pesca, porque não ensiná-los a pescar?

Há mais duas hipóteses que ficam de pé ao interpretar o fenómeno Live 8. Ou um espaço de visibilidade para músicos que já entraram na linha de decadência, servindo de espaço nostálgico para os próprios e para quem foi seu fã nos tempos áureos. Uma forma de retirar os empoeirados esqueletos dos sarcófagos. Ou o palco de eleição para políticos que estão na rampa de lançamento para o estrelato, para deter os cordéis do poder. Gordon Brown, o delfim-rival de Blair, está na frente da grelha de partida. Apareceu na Escócia, de braço dado com os manifestantes que desfilaram contra a reunião do G8 que começa hoje em Edimburgo. Estranha-se a companhia: como foi acolhida uma personagem que ilustra o sistema contra o qual os manifestantes protestam com vozes tão ofegantes?

O mundo é ingénuo quando cai no alçapão das ilusões. Ver o equivalente ao ministro das finanças, com uma formação económica “clássica”, aspirante a suceder ao primeiro-ministro de um dos países que faz parte do G8, a prometer mundos e fundos para colocar uma pedra sobre a pobreza mundial, soa a um mundo anestesiado que de tanto querer alcançar um objectivo se cega quando um dos arautos do sistema em que não se revêem emerge como paladino das causas justas por que se batem. Mas, enfim, os idealistas têm o predicado de depositar a fé na utopia. Verão, mais tarde, como o desencanto é uma lança profundamente espetada. Que quando deixa de possuir o corpo na sua dormência o acorda para as dores lancinantes – as dores de observar que o tempo passou e a pobreza continua lá, no mesmo sítio, no mesmo patamar.

1 comentário:

Anónimo disse...

Excelente conteúdo; este post reflete quase por inteiro o que penso sobre a matéria.
Blair tem motivos diferentes dos que evoca para rejeitar o novo Orçamento da UE, mas tem razão em relação à PAC; é ridiculo estarmos a subsidiar uma agricultura europeia, tornando os agricultores( franceses essencialmente) ainda mais ricos e castrando todas as hipóteses de desenvolvimento à agricultura dos países pobres ou em vias de desenvolvimento.
Nos Estados Unidos a situação é semelhante com os incentivos à produção.
É inadmissível que um Kg de arroz importado, em Dakar por exemplo, seja metade do preço do arroz produzido no Senegal!!!!?????
Com esta politica de subvenções apenas permitimos uma ténue agricultura de subsistência nos países pobres, deixando-os encalhados pelo peso excessivo da sua dependência alimentar do exterior.Mais importações igual a mais créditos igual a maior dívida externa.
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