Um lugar comum: onde há duas pessoas, duas formas diferentes de ver a mesma coisa. A desarmonia de opiniões vem da racionalidade que temos. Se a divergência é cultivada com paixão, levada a um ponto de exacerbamento, a discussão eleva-se a um tom que aflige os tímpanos e dói no espírito. Quando a assembleia é composta por muitas pessoas, a tendência para a anarquia (no mau sentido da palavra) é certa. É um enorme sacrifício quando tenho que estar presente em ajuntamentos do género. As últimas duas quartas-feiras testemunharam duas reuniões desta espécie: um conselho científico na universidade e uma reunião anual do condomínio.
Como se não bastasse a propensão para a discordância barata, as coisas pioram quando na assembleia temos egos que carecem afago. Criaturas que se julgam imbuídas de um espírito iluminado, ou gente que só quer falar sem nada dizer, apenas para abrilhantar a reunião com a sua presença. De repente, as reuniões resvalam para o descontrolo. Não há agenda de trabalhos que resista. Em pouco tempo, as pessoas embarcam numa onda gigantesca que as empurra para o acessório, deixando de lado do essencial. Discutem-se pormenores insignificantes, anda-se à volta do “sexo dos anjos”, a discussão eterniza-se por pequenas coisas que opõem dois teimosos que não querem dar o braço a torcer – sim, é a “mentalidade Mourinho”, o “não perder nem a feijões” que ganha adeptos em todo o lado, para gáudio dos egos altivos que se esquecem de uma coisa tão simples e importante, a eficácia.
À memória vêm as recordações da reunião de ontem da assembleia de condomínio, e da reunião da quarta-feira da semana passada do conselho científico: as pontes que se tecem são claras como a água. Quem julga que num conselho científico de uma universidade, que reúne todos os professores com o grau de doutoramento, a urbanidade e a eficácia na condução dos trabalhos são apanágio, desengane-se. Os professores universitários são mentes muito complicadas. As rivalidades entre facções, espúrias na maior parte dos casos, alimentam invejas bacocas, discussões estéreis, tempo perdido a discutir tudo menos o que interessa. As farpas venenosas, mas subtis, entendem-se nas palavras que ecoam da boca de certos académicos. Valha a frontalidade que poupa a covarde e falsa deferência que caracteriza o relacionamento de políticos e advogados, por exemplo.
Quando um condomínio é gerido por uma empresa especializada, e quando existe um historial de inimizade entre alguns vizinhos e a administração, a desconfiança congénita do ser humano trata do resto. Todos os actos, sobretudo os mais corriqueiros, são questionados (ontem questionou-se uma rubrica do orçamento para envelopes de correio azul, uns trocos…). Os contestatários, perdidos em minudências, artilham-se de argumentos para desmontar os gastos, sugerindo desgovernação e má-fé da administração. Aos poucos, vai-se percebendo que a minúcia, que passa a fronteira do admissível e entra no terreno da mesquinhez, tem origem em desavenças ocorridas no passado. Percebe-se a lógica: a reunião é um ajuste de contas público, como se os contestatários quisessem fazer da assembleia um tribunal popular para decapitar a administração. A baixeza atinge o ponto de se trocarem ameaças: tudo se resolverá “nos locais próprios”, supõe-se que em tribunal. Com a paciência a esgotar-se, lentamente.
Pelo caminho, vozes entoadas em tom ameaçador, a má educação em lampejos indisfarçáveis, arrogância transpirada a rodos. Até que alguém tenta pôr ordem na reunião. A noite ia avançada, o dia seguinte era de trabalho, e as pessoas estavam entretidas a discutir o nada e a esquecer o importante. De repente, a lembrança da reunião do conselho científico, uma semana antes. Uma hora e dez minutos a discutir, acaloradamente, se uma votação da reunião anterior era válida. Não era o conteúdo, apenas a forma que estava em causa. Dando razão aos que acusam os professores universitários de não serem atreitos aos aspectos pragmáticos da vida, uma hora e dez minutos consumidos para se chegar à conclusão que a votação da reunião anterior (que terá gasto largos minutos dessa reunião) afinal não era válida. Nos restantes vinte minutos despacharam-se os outros três pontos da agenda de trabalhos!
A cabeça humana é uma coisa complexa, um labirinto arrevesado que apetece desprezar, pois as tentativas para a decifrar trazem outros enigmas. Um poço sem fundo. Quanto mais se aprofunda a análise, mais problemas se descobrem, mais se escurece o diagnóstico. Como deve ser complicado ser psicólogo!
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