Não bastam as imagens cruéis dos incêndios que devastam a floresta, ano após ano. Não chega o espectáculo dantesco, labaredas assustadoras que trepam monte acima, galgam o asfalto da estrada e prosseguem a sua furiosa marcha através de mais árvores que acabam os seus dias nas cinzas de um incêndio. Ou a azáfama dos bombeiros, cientes de que o Verão é sinónimo de noites seguidas sem dormir, num combate desigual com as chamas assassinas. Como se tudo isto não bastasse, as televisões esmeram-se por mostrar o sofrimento de quem perdeu os seus haveres num maldito incêndio.
É o espectáculo circense do sofrimento humano. Um espectáculo indigno. É ver as câmaras à frente de uma velhinha com o coração nas mãos, sem saber se as labaredas que partiram do horizonte longínquo, e que se abeiram da aldeia, vão levar o seu parco património. É ver as câmaras retratarem a choradeira desesperada da velhinha, acompanhada de gritos desalmados clamando por um socorro divino que não há-de chegar. Uma plateia refastelada assiste às pungentes imagens. Como se fosse obrigação da televisão mostrar os padecimentos humanos de quem é afectado por um incêndio, num clamor colectivo que se confunde com um tenebroso acto de solidariedade. Através das imagens dolorosas, enviamos a nossa piedade que se esfuma em nada. Aquietamos a consciência: doemo-nos com o sofrimento alheio, sabendo que basta a partilha da dor de quem sente na pele os males de um incêndio.
Recuo umas semanas, aos atentados em Londres. E comparo as duas situações – se é que existe comparação possível, na devastação humana, na brutalidade que levou vidas inocentes. Os britânicos têm uma educação diferente dos portugueses. As lusitanas gentes comprazem-se com o mal dos outros, porque sabem que se algum dia a desgraça lhes bater à porta recebem os condoídos sentimentos de imensa gente. Atrelamo-nos uns aos outros na hora da desgraça. Numa partilha recíproca da dor: como se fosse a solução para atenuar a dor de quem sofre na carne as maleitas da desdita. Ao mesmo tempo, a partilha da dor revela um estranho sentimento de renovação: a nossa piedade significa que o mal continua a bater à porta do vizinho, não à nossa porta. É uma sagração do bem-estar que nos bafeja.
Em Londres, a discrição na hora de fazer a contabilidade das perdas. O respeito pela dor dos que perderam entes queridos nos túneis do metro, às mãos de bombistas suicidas. A decência de evitar o espectáculo mediático com o ingrediente do sofrimento alheio. Um sentido de decoro, mesmo na hora de tapar das indiscretas câmaras os primeiros socorros às vítimas que saíram ensanguentadas dos fatídicos túneis. Por cá, exactamente o contrário. Quanto mais sangue, melhor. Lá virá um aviso do jornalista: “as imagens que se seguem podem ferir a susceptibilidade das pessoas mais sensíveis”. É só um aviso que chama a atenção de mais gente ainda, ávida para saciar a sua curiosidade mórbida. Já me sinto repetitivo no clamor: esta comunicação social bestializa-se, demite-se das suas funções pedagógicas. Achincalha-se, descendo ao nível medíocre do povo que serve.
Se não é nos incêndios, é noutros cataclismos, acidentes, incidentes, desgraças da mais variada espécie. Sempre as imagens das vítimas emolduradas (quando elas podem falar), ou dos seus familiares (quando as vítimas perecem). Um retrato indecoroso do que somos, numa estranha confusão entre um dever de solidariedade pela dor dos outros e a necessidade de ser espectador dessa dor sob pena de se ausentar o espírito solidário. O preço a pagar, para a colectivização da dor, é a sua exposição perante os olhares indiscretos dos abutres do sofrimento alheio. Então sim, lugar às mágoas carpidas em sinal de respeito por quem sente a dor na pele. Sem se perceber que é indigno devassar a dor alheia.
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