Começou por baixar o machado sobre a cabeça do presidente da câmara do Porto. Interrogou-me: entendia eu o luxo do grande prémio histórico que vai trazer até nós relíquias do património automobilístico de outrora? Pouco faltou para subscrever a teoria do “grande prémio de calhambeques”, descoberta pelo rival socialista de Rui Rio na corrida à edilidade. Mantendo o tom crítico, disse não compreender a origem do dinheiro para fazer as obras de requalificação necessárias para colocar os bólides a correr. Tentando entrecortar o monólogo, adiantei a hipótese posta a correr pelos serviços camarários: as obras hão-de ser pagas pelo Metro (ainda que a linha da Boavista não esteja aprovada – o que, concedemos os dois, é um salto no escuro que pode ter consequências imprevisíveis); e que a obra se paga a si mesma com o pecúlio dos patrocínios.
A sanha persecutória a Rui Rio continuou. Percebi a motivação de tão exacerbado ódio de estimação: o interlocutor é portista ferrenho. Digeriu mal a posição de Rui Rio de colocar o presidente do FC Porto no seu devido lugar. Aquilo que eu vejo como uma ruptura da cumplicidade entre o clube e os executivos camarários liderados por Gomes e Cardoso, ele via como “corte de relações” entre a câmara e o clube. Percebi que não era aconselhável atear fogo à discussão. Os portistas inflamados cegam-se de irracionalidade quando toca a defender o clube do seu coração. E não me apetecia alimentar a discussão: as nossas energias diluir-se-iam com o suor destilado no banho turco, até que nos exauríssemos no local.
Não tinha terminado o rol de lamentações. Disse, por “deformação profissional”, saber que a lei é geral e abstracta. Mote para me perguntar se eu compreendia o braço de ferro com a ministra da cultura por causa do túnel que desemboca às portas do museu Soares dos Reis. Se o presidente da câmara desrespeita uma orientação do governo central, está a espezinhar a lei. Só por si, isto é grave ao ponto de questionar a legitimidade de uma autoridade que deve respeito à lei. Essa autoridade não pode obrigar os munícipes a respeitar a lei que o escuda em decisões que adopte. “Acha que o Rio tem legitimidade para demolir um prédio se os habitantes se opuserem?”, perguntou.
Depois apontou a mira a Carrilho e a Santana Lopes. Esboçou as semelhanças que fazem das duas personagens irmãos – desavindos em muitas coisas, mas irmanados em muitas outras: no cargo que um detém e que o outro se propõe a exercer, no gosto pela noite, pelas mulheres, pelas revistas cor-de-rosa, na apetência pelo populismo. Aproveitou para dar conta do seu cepticismo ideológico. Fez uma incursão pela teoria política, dizendo que os partidos do bloco central se confundem na ideologia, são “farinha do mesmo saco”. Ele gostava que os partidos fossem fiéis a linhas ideológicas que os demarcassem. Não da balbúrdia corrente, em que partidos de direita perfilham políticas de esquerda e vice-versa.
Teve ainda tempo para lançar uma âncora na Constituição da União Europeia. Esgrimindo argumentos contra, porque a Constituição uniformiza coisas que vão diluir as identidades nacionais. Utilizou um exemplo descabido: alegou que temos um sistema autárquico único na Europa, e que a Constituição irá destruir essa idiossincrasia nacional. Como já estava a ficar saturado do discurso empolgado e exausto pela longa sessão de banho turco, limitei-me a acenar a cabeça em sinal de concordância. Quando seria fácil dizer-lhe: a Constituição da União Europeia não belisca a estrutura do poder autárquico em Portugal e em nenhum país. Só tive tempo de lho dizer por meias palavras, ao argumentar que o referendo abortado é uma inutilidade pois as pessoas seriam chamadas a referendar uma coisa que desconhecem. Como ele era, aliás, imagem cristalina.
De súbito, cansou-se da prédica. Para meu alívio. Olhei para o relógio: trinta minutos de banho turco, um recorde! Debaixo do chuveiro, a água fria corria corpo abaixo num efeito balsâmico. Ainda a recompor-me da homilia crítica, despertei para a realidade: tudo aquilo me era familiar. Para além das discordâncias que não cheguei a afirmar, o tom crítico não me era estranho. Da introspecção que se seguiu, uma ilação: a necessidade de repensar o que escrevo, perdendo de vista os excessos críticos de quem anda desalinhado do mundo. A prédica do banho turco teve esse efeito: ver que a crítica mordaz veicula um moralismo de que não quero ser titular.
2 comentários:
Julgo que a experiência que vais viver no próximo fim de semana te vai "fornecer quase todas as pistas" que procuras no banho turco. Lá em cima, és só tu, o sol, as estrelas, pedaços de vegetação rasteira, muita pedra (para "partir"!...), água e lobos...com sorte. As "coisas" da civilização transformam-se numa doce neblina cada vez mais densa à medida que vais subindo...
Looking forward!
Paulo
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