6.7.05

“Orgulhosamente sós” e xenofobia

Há uma marca de iogurtes que apostou numa atractiva campanha de marketing: nas embalagens dos iogurtes de fruta, a menção de que só contêm fruta nacional. É o regresso ao velho ideal “o que é nacional é bom”.

(Era interessante indagar a fundo o conteúdo do produto, para testar a seriedade da informação. Sabendo-se que a indústria agro-alimentar recorre com intensidade a corantes, conservantes e substâncias que substituem produtos naturais – há tempos descobri que a indústria da pastelaria usa ovo em pó… – a fruta publicitada é fruta verdadeira, ou apenas mais um embuste ditado pelas necessidades do marketing?)

Num programa matinal de televisão que chega até aos meus olhos nos momentos que antecedem o almoço, passa uma rábula. O actor informa que todos os dias são criados não-sei-quantos postos de trabalho na agricultura nacional por causa da empresa de lacticínios que se envaidece de usar fruta dos pomares nacionais. A assistência, entusiasmada e ciosa de preocupações sociais (tê-las é de bom tom, há que não olvidar), aplaude. Sinto que todos vão sair dali mais ricos com a diligente informação.

Eis senão quando, num golpe de asa, o actor tira da cartola uma proposta imaginativa. Lança um repto aos autarcas: pede-lhes que ao licenciarem a construção do enésimo hiper-mercado contratualizem a obrigação da superfície comercial se abastecer de frutas e legumes oriundos de agricultores locais. E se a produção destes fosse insuficiente para as necessidades, dar-se-ia primazia aos agricultores de concelhos limítrofes. Só quando se esgotasse a produção nacional é que poderiam comercializar bens provenientes de outros países. Excitado, o actor finaliza a rábula: ainda que os géneros frutícolas e as leguminosas regionais fossem mais caros, deviam os hiper-mercados apostar na produção nacional por imperativos de pedagogia. Eu descodifico o que o inefável actor não conseguiu dizer: que nós, consumidores destes bens, temos que ser uma espécie de “segurança social” dos agricultores portugueses.

A cordeirada presente no estúdio acenava a cabeça em sinal de concordância. Ao lado do actor, a Barbie apresentadora esboçava o milionésimo sorriso de orelha a orelha, branqueada dentadura a contrastar com a tez estorricada por incontáveis sessões de solário, saltando de excitação com a ideia brilhante do actor. A criatura terá tirado a licenciatura em direito e terá tido uma disciplina que lhe ensinou os fundamentos da União Europeia. Que ser membro da União Europeia envolve muitas coisas, entre as quais uma que se chama “liberdade de circulação de mercadorias”. Nenhum país que pertença à União Europeia pode impor obstáculos à entrada de produtos com origem noutros Estados membros. Só se pode exigir reciprocidade de tratamento se os outros não discriminarem contra nós. Porque se formos nós a discriminar os outros países da União, então só podemos esperar que a seguir venham retaliações que nos discriminem. Participar na União Europeia não é só colher os benefícios; é também participar nos deveres.

A figura Barbie que co-apresenta aquele programa, do alto da sua ignorância, deixou escapar este importante aspecto que desmontava a rábula do actor. Em vez disso, permaneceu com o seu sorriso Pepsodente, encantada com a performance, fazendo tábua rasa do que lhe foi ensinado nos bancos da universidade. Fazer cidadania também é isto – corrigir os erros dos outros, sobretudo quando eles podem induzir muitos mais em erro.

Nota final para a incongruência do actor: quis opinar sobre mais um dislate a que Alberto João Jardim nos habituou. Desta vez com as lamentáveis afirmações que entoaram xenofobia contra chineses, indianos e pessoas de leste. Mas paremos para pensar: quando se reclama tratamento prioritário à fruta e legumes portugueses, não estamos a admitir uma discriminação dos que não são portugueses (mais a mais quando as regras da União Europeia o não consentem)? Concedo a existência de uma diferença de grau: numa coisa falamos de pessoas, noutra de produtos. Mas mesmo nos produtos não há uma implicação indirecta nas pessoas? Quando se defende a primazia dos produtos agrícolas portugueses não se pretende defender o emprego nacional?

Num mercado aberto, exposto à globalização que é tão positiva para quem consome, estes proteccionismos são a versão encapotada da xenofobia que o actor desdenhou no episódio de Alberto João, mas que nem deu conta que estava a ser fautor na rábula que protagonizou.

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