18.7.05

O evangelho em acordes de rock-and-roll

A beleza da vida é deparar com surpresas, com o inusitado, com episódios que julgaríamos impensáveis. Põem-nos a pensar. Servem para interiorizar como o ser humano é fértil em imaginação, uma imaginação que se alonga bem para além do que se julgava possível.

Em Espanha há um jovem padre que faz da música arma de evangelização. Diz o padre Jony que quer chegar aos jovens através do rock-and-roll, demonstrando que o que parece incompatível (rock-and-roll e igreja) é um tabu sem fundamento. Desconheço os meandros da história do padre Jony, além das breves informações dadas numa reportagem de escassos minutos. Desconheço se há aqui muito de marketing – nisto da indústria musical, a roupagem que embeleza o produto vale muito mais que o conteúdo, e os especialistas de marketing acampados nas empresas discográficas sabem-no bem, sabem como os consumidores vão no engodo com toda a facilidade.

Estranhei a imagem do padre Jony, o vocalista da banda que estiliza uns sons pesados para acompanhar a mensagem “deus, paz e rock-and-roll” (padre Jony dixit). Um padre que não se libertou do cabeção que anda tão arredio dos padres dos nossos dias. É curiosa a indumentária: um cocktail desusado, que mistura o cabeção ao pescoço com umas calças negras que se ajustam à morfologia das pernas, mais umas botainas típicas de rockeiros de velha estirpe. O cabelo do cura foge aos estereótipos canónicos – farta cabeleira desgrenhada, que vai ondulando ao sabor dos acordes selvagens que se soltam da guitarra.

A acompanhar um som que roça o apocalíptico, letras que pretendem tirar os jovens da droga, recuperá-los para os bons valores da vida. Dir-se-ia estarmos perante um “rock-and-roll” atípico, que rejeita o niilismo que abunda entre os mensageiros da desgraça que desunham as cordas de uma guitarra em sons crus, destilando imagens de violência, de negação da beleza da vida. O padre Jony quis entrar pela música onde a igreja tem perdido adeptos – junto dos jovens que se deixam levar pela vacuidade dos valores (ou da falta deles), pelos aspectos mundanos da vida, entregues aos descaminhos que os levam a becos sem saída.

Na curta entrevista, o padre-rockeiro confessou que foi atraído pelo sacerdócio no dia em que um amigo de infância tombou, exangue da vida, consumido por uma overdose. O bichinho da música já vinha de trás, e acompanhou-o para o seminário onde se fez padre. Disse também que o bispo que o tutela deu-lhe coragem para prosseguir a carreira dual. Deve ser um bispo progressista, que também os há. Interessante seria saber a opinião da cúpula eclesiástica, tão dada à ortodoxia que desliga a igreja dos tempos que a cercam.

Depois do primeiro impacto, da surpresa, solta-se da memória a lembrança de como a música moderna se deixou acorrentar às preocupações metafísicas. Já há uns anos que Nick Cave, outrora figura demoníaca do panorama musical, se converteu às delícias da religião. E insiste em fazer poemas que enaltecem a mensagem divina como indicação celestial de um caminho que o tirou de uma vida de perdição, reencontrado com a tranquilidade do espírito. A diferença está em que Nick Cave não é padre. O exemplo de Nick Cave é o paradigma de uma transformação radical: de como alguém entregue à bebida, às drogas, a uma vida pecaminosa (na retórica que ressoa à linguagem eclesiástica) se reencontrou por dentro quando descobriu deus, aplicando-o essa introspecção à arte em que ficou conhecido.

Há as ovelhas tresmalhadas. Aqueles que foram educados nos dogmas da igreja católica, mas que perderam o rasto da luz que ilumina uma fé que toca o irracional. Esses, imersos numa angústia agnóstica, que se admiram, contudo, com os exemplos dos que se sabem reencontrar com um deus que, julgam eles na sua fé inquebrantável, lhes indica um caminho de felicidade. Genuína admiração, por irem no encalço de uma vereda que lhes traz a tranquilidade interior.

Para um agnóstico, a confusão de ver um padre trajar ícones tradicionais da igreja (o cabeção que saiu de moda) ao mesmo tempo que se ajoelha, olhos voltados ao céu, entoando o “pai-nosso que estás no céu” ao som de uma sinfonia de guitarras roucas, um som metálico e cabeleiras fartas que esvoaçam compassadas com os acordes que se soltam das guitarras. Apenas imagem bem conseguida, ou iniciativa genuína de quem sente que prega num deserto de ovelhas pouco dadas à mensagem bíblica?

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