15.7.05

O que há de comum entre o Ballet Gulbenkian e o speed dating


Take 1: um abalo telúrico, um país em estado de choque. O mundo da cultura, ciente de ser o detentor da verdade e incapaz de admitir que haja opiniões dissonantes, destila indignação. Para compor o ramalhete, excitados repórteres televisivos interpelam o presidente da Fundação Gulbenkian, são os mensageiros de um “país preocupado”. A extinção do Ballet Gulbenkian é um duro golpe na cultura nacional. Não interessa que a Fundação Gulbenkian seja uma entidade privada, com autonomia para fazer o que bem quiser com o seu dinheiro. Nem tão pouco interessam as pacientes explicações do presidente da fundação, dizendo que vão continuar a apoiar o bailado noutros moldes.

Take 2: uma inovação que promete fazer correr tinta – o primeiro encontro de speed dating. Fórmula que chega até nós importada do estrangeiro, que nisto de usos sociais somos tão conservadores que só temos pejo para ousar depois de outros terem experimentado as coisas novas. Vinte e cinco homens e vinte e cinco mulheres foram seleccionados para o encontro. Vão rodar uns pelos outros, num frente a frente que dura uns escassos minutos (três, de acordo de com uma das fontes, quatro minutos para outra – e viva o rigor noticioso!). Dizem os organizadores que é o tempo suficiente para os concorrentes se conhecerem. Cada um anota as qualidades que distinguem naquele/a que consideram o/a melhor. Se houver uma coincidência de preferências, os felizardos serão notificados por e-mail para aprofundarem o conhecimento.

De volta ao take 1. Sem surpresa, a indignação varreu o lobby da cultura. Vingou a retórica que já começa a encher os ouvidos – a retórica dos “direitos adquiridos”. Diz-se que o Ballet Gulbenkian firmou o seu nome, que foi uma pedrada no charco no panorama do bailado nacional. A Fundação Gulbenkian, na pessoa dos seus administradores, não escapa da mácula ao extinguir o Ballet. Nos depoimentos de anónimos solidários, bailarinos afectados e figuras gradas da arte, ouvi Olga Roriz, afamada coreógrafa, dizer com a ingenuidade de uma criança que os senhores que tomaram esta decisão ficam para a história como “pessoas más”. Para aumentar a vaga de fundo, anda pela Internet um abaixo-assinado que protesta contra a morte decretada do Ballet Gulbenkian. Recebi ontem um e-mail para subscrever o abaixo-assinado. O mau feitio, ou uma forma diferente de pensar, levaram-me a quebrar a corrente. Não terei o privilégio de engrossar a lista de subscritores.

Há algo que não bate certo neste histerismo colectivo. Primeiro, parece que a Fundação Gulbenkian é o ministério da cultura. Desenganem-se, não é. É uma entidade privada, que tem liberdade para decidir utilizar os seus recursos como bem entender, sem ser condicionada pela “vontade colectiva” (no que isso possa ser). Segundo, insiste-se em passar a mensagem que a cultura tem que ser subsidiada, como se não houvesse lugar a um mercado para a cultura como há um mercado para qualquer outra coisa. Antecipando as acusações de “neo-liberalismo” que me poderão fustigar, digo que é estranho que os arautos da cultura sejam defensores dos oprimidos, que andem sempre a clamar por uma justa redistribuição da riqueza; e depois defendam o financiamento público da cultura, que aproveita apenas a uma reduzida e não carenciada elite. Regista-se a coerência argumentativa.

Take 2, de novo. Adivinho João César das Neves a tomar conhecimento do evento de speed dating e a contorcer-se de arrepios. A desaprovação viria registada em prosa beática na sua crónica das segundas-feiras no Diário de Notícias. Ensaio um esboço: “o speed dating prova como os costumes sociais perderam o rasto da decência. Tudo se consome na voragem do tempo, despersonalizando as relações pessoais, unicamente viradas para os prazeres carnais que se desligam da imaterialidade da alma. Como podem duas pessoas apaixonar-se, envolver-se num relacionamento duradouro, quem sabe constituir família, se partem de um conhecimento fugaz? Sinal dos tempos da depravação moral em que vivemos. Somos educados para esquecer os bons valores cristãos, olhando para os prazeres que exibem a espontaneidade dos sentidos. Qualquer dia, haverá concursos em que as pessoas fazem sexo umas com as outras, sem sequer se terem conhecido antes. É a sintomatologia do mundo perdido para que nos encaminhamos. O Senhor perdoá-los-á, do alto da sua bonomia!

Afinal o que há de comum entre o Ballet Gulbenkian e o speed dating? A fugacidade das coisas, que não podem aspirar à condição eterna. Numa escala temporal diferente, tudo é efémero, tudo tem o seu tempo. Quando ele se esvai, resta a sepultura e o registo nos anais da história. Sem lamentações, apenas olhando para o tempo que ainda pode ser aproveitado – o tempo que nos resta percorrer, não o que já foi percorrido. Na consciência de que tudo é fugaz, tudo tem o seu tempo, numa exibição da fragilidade das coisas que nos rodeiam. Sem dramas.

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