O ensino universitário vai passar por uma revolução profunda com o processo de Bolonha. Trata-se de um novo sistema de ensino, novas metodologias que vão exigir novos hábitos a quem ensina e a quem estuda. Apregoa-se que Bolonha significa a emancipação intelectual do estudante. Aos professores competirá ensinar a pensar, ensinar a investigar, dar autonomia aos alunos para trabalharem dentro das linhas definidas para cada disciplina, com as ferramentas indicadas por quem ensina.
O processo de Bolonha causa-me algumas perplexidades. Primeira perplexidade: na mudança de hábitos de estudantes e professores. Da parte que me toca, estou certo que a adaptação ao novo modelo não será problemática. Já ensaiei as características do modelo com grupos que estudantes estrangeiros. Receio que a adaptação seja mais custosa para os estudantes. A experiência com os alunos estrangeiros foi proveitosa. Nos países de origem, estão acostumados a hábitos de trabalho que os portugueses não têm. Temo que, para estes, os tempos que se avizinham sejam de dolorosa adaptação aos ventos da mudança soprados desde Bolonha. E se vingar a tradicional falta de perseverança doméstica, que haja desistências pelo caminho a engrossar os indicadores de insucesso académico.
Porventura o futuro não será assim tão sombrio. Talvez o principal desafio que se antecipa para quem ensina seja educar os alunos para os novos hábitos de trabalho, convencê-los da bondade do sistema, mentalizá-los que Bolonha foi concebido para fazer deles pessoas bem preparadas para as exigências do competitivo mundo profissional. Fará sentido passar a mensagem de que o ensino universitário é uma nova etapa na aprendizagem. Que a transição do ensino secundário para o ensino universitário é uma ruptura de hábitos e de aplicação mental. Uma universidade formatada de acordo com Bolonha será um lugar de emancipação intelectual que exige mais responsabilidade dos alunos. Só com responsabilidade pessoal poderão encontrar a destreza intelectual que é a matéria-prima de eleição com o processo de Bolonha.
A principal perplexidade não é esta, contudo. Mais incerto é o resultado que Bolonha vai provocar no pós-universidade, na colocação no mercado de trabalho. Uma das principais inovações do processo é a transformação das licenciaturas de quatro e cinco anos em mestrados com a duração de 3+2 ou 4+1 (licenciatura mais mestrado). Um aluno que nunca reprove, que não se tenha equivocado nas opções ao longo do percurso escolar, poderá ter um mestrado na mão com vinte e três anos. Se as coisas continuarem a correr bem, dois anos mais tarde pode estar doutorado. Com vinte cinco ou vinte e seis anos de idade, uma fornada de jovens doutorados que aparecem no mercado de trabalho à procura da sua primeira ocupação (presumindo que não se dedicam à investigação universitária).
Este fenómeno terá um lado positivo: será bom para os pedagogos e os políticos puxarem lustro ao brio nacional (e ao ego pessoal), em sucessivos auto-elogios que enfatizam o sucesso do sistema de ensino. Mas terá também um lado negativo, que seja uma mera ilusão estatística. Faz-me lembrar as queixas dos burocratas nacionais que lidam mais de perto com a distribuição dos dinheiros da União Europeia. Antes do alargamento aos países do leste e do mediterrâneo, concorríamos com a Grécia e com a Espanha pela maior fatia do bolo. Com a entrada dos dez novos Estados membros, o nível médio de riqueza da União diminuiu. Portugal aproximou-se dessa média, sem se ter verificado um súbito aumento do bem-estar. Apenas se deu o milagre dos números: com a entrada de países mais pobres que nós, a ilusão estatística de estarmos mais próximos da média.
Lembro este fenómeno para tecer um paralelo com a fornada de recém-formados pelo modelo bolonhês. Para vaidade dos políticos que lidam com o assunto, os indicadores de excelência académica vão aumentar. Resta saber se o mercado de trabalho está em condições de absorver toda esta gente, se pode oferecer condições compatíveis com a formação especializada que adquiriram. Mais importante ainda, se o mercado pode dar uma resposta que satisfaça as expectativas que foram sendo sedimentadas por tantas pessoas que têm um mestrado na mão.
Preocupa-me que em poucos anos passemos do oito para o oitenta. Ontem li no Diário de Notícias que 72% da população nacional tem apenas o ensino primário. Escassez de habilitações faz um povo iletrado e nutre a escassa competitividade. Daqui a uma década as estatísticas serão mais risonhas; mas não encontraremos pessoas com excesso de habilitações, desenquadradas do mercado de trabalho? Interrogo-me se a resposta não será Bolonha, antes algo de parecido com o reprovado CPE francês.
Esta incógnita traz-me à recordação uma história contada há mais de dez anos por um professor em Coimbra. Contava que no Brasil há muitos taxistas que são licenciados em direito. Para o professor, isso não era um sintoma de doença. Era sinal de dinamismo social, do sucesso do sistema de ensino, de uma sociedade que dava sinais de elevados parâmetros de formação. Fez-se silêncio. No grupo restrito (eram aulas que mais se assemelhavam a um brainstorming entre o professor e meia dúzia de alunos), alguém perguntou ao professor se ele teria a mesma opinião caso fosse um dos licenciados em direito sentado atrás do volante de um táxi. O professor não soube dar resposta.