6.4.06

Os impostos do pecado


Há consumos que têm a cicuta dos impostos. Estes chamam-se impostos especiais de consumo. Outras vezes, é uma actividade lúdica que gera avultadas receitas e o Estado arroga-se ao direito de aplicar impostos sobre tais actividades. É o exemplo dos jogos de azar. Em todos os casos, vulgarizou-se a expressão “impostos do pecado”.

Enternecedor, este rótulo. Primeiro, porque somos educados na ideia de que certas coisas que fazemos, sem serem ilegais, são pecaminosas. Não é fácil a emancipação do jugo religioso. Podem insistir que o Estado é laico, como se lê algures na Constituição. Não passa de uma declaração de intenções, ou não estivesse enraizado o hábito das cerimónias públicas e das inaugurações terem a indispensável presença de um cura de serviço que abençoa a obra inaugurada, ou soleniza o evento com uma mão que representa deus.

A extensão metafísica na terra – o Estado – requinta a cumplicidade religiosa quando importa o dogma do pecado para assustar as almas crentes, as que acreditam piamente que a morte lhes pode trazer um camarote na celestial dimensão. Sabem que as portas são franqueadas por um S. Pedro cauteloso, atento ao deve e haver terreno no domínio do pecado, ao exercício de humildade do arrependimento. Aqui também cabem certos consumos que fazemos. Sobre eles recai o peso da censura social, investida num papel consciencioso que tutela a consciência individual.

O tabaco, as bebidas brancas, o jogo (em casinos ou fora deles) não são ilegais. A boa consciência social manda que haja decência para evitar os excessos. Por muito ou por pouco que se consuma, lá vem a mão pesada de um imposto de pecado para restabelecer o equilíbrio. Supõe-se que os inveterados consumidores apaziguam a consciência quando se libertam do encargo do pecado assim que pagam o dito imposto. Tudo se passa como se o Estado fosse o confessor, escondido sob o anonimato do biombo que o separa do crente apanhado em pecado. A absolvição surge na forma do imposto, o sucedâneo da penitência que o pobre e humilde súbdito cumpre voluntariamente, pagando a quem lhe proporcionou a libertação dos encargos de consciência. É o Estado, na versão igreja do reino de deus.

Enternecedor, em segundo lugar, pois para curar os males pecaminosos está o vigilante Estado, a nossa consciência. Para não cairmos na tentação dos excessos que agravam a dimensão do pecado, a paternal entidade estatal sanciona os pecados a que a gula dos sentidos nos conduz. Apetece glosar: deus no céu, o Estado na terra. Actividade desinteressada, decerto. Apenas um serviço – mais um – que essa criação do Homem (que por acaso o aprisiona) presta aos estouvados súbditos que se entregam nas delícias dos consumos pecaminosos. Há receita que entra nos cofres do Estado. Mas é só por acaso, e quem detectar alguma causalidade está a abusar do juízo.

Os impostos do pecado são uma contradição lógica. Se são pecaminosas actividades, eis mais uma oportunidade para a afirmação da autoridade de quem manda em nós: proíba-se, parágrafo. Se o consumo destes bens é tolerado, por definição eles não conduzem ao pecado. Autorizar algo é a negação do pecado (se bem me lembro da lógica religiosa). Se podemos libertar umas baforadas de tabaco de cachimbo, ou apanhar bebedeiras com whisky de malte, ou torrar o salário na roleta, estamos no domínio do consentido. Do que não é proibido, por não ser ilegal.

Dir-me-ão que estes consumos aparecem conotados com malefícios para a saúde pública (tabaco e álcool) ou com a degradação individual (excessos de jogo). Que não há razão para proibir o consumo destes bens, mas que eles não são tão “legítimos” como os bens que escapam à mácula do pecado. Não alinho na putativa menor legitimidade desses consumos. Não há lugar para o intermédio: se não é proibido, é autorizado. E tudo o que é autorizado não pode obedecer a graduações de legitimidade que escondem a esperteza saloia do Estado cobrador de impostos, a sua queda para caucionar a moralidade pública.

Percebe-se que, na terminologia oficial, estes impostos não tenham a designação “impostos de pecado”. Algum arquitecto de impostos terá discernido a ultrajante qualificação (se ela fosse oficial). A designação não está lá, mas estes impostos não se livram do rótulo. Eles são o que são, muito mais do que o nome sofismado que lhe dão. Pecaminosos – se o conceito fosse relevante para um ateu – são os persistentes roubos da propriedade privada, os impostos.

Sem comentários: