Ontem tinha findado o primeiro acto desta tragicomédia, a governação a que temos direito. Hoje a peça continua. Desce o pano, começa o segundo acto. Mais bazófia de mentes superiormente iluminadas, que nos concedem a graça da sua inteligência ao nosso serviço. Guardiães do bem-fazer, é o que são. Desinteressadas almas, apenas a missão – o espírito de sacrifício – do serviço público. Sem outro interesse para além desse altruísta gesto.
No segundo acto da tragicomédia entram em cena inenarráveis criaturas especializadas em pedagogia. Circulam há largos anos nos corredores do ministério da educação. Consideram-se na vanguarda do pensamento. Educadores por excelência, desdobram-se em mil e uma experiências. Lamentavelmente, a fobia experimentadora leva-os a esquecer que as crianças que se arrastam pelos bancos da escola são as cobaias. Depois, estes praticantes da pedagogia "experimentativa" metem a cabeça na areia, como se avestruzes fossem, quando alguém mostra as estatísticas da iliteracia, as estatísticas que nos colocam em lugares nada orgulhosos quanto à qualidade do ensino.
De vez em quando, os pedagogos cintilantes saem da toca. É a ânsia de mostrar serviço. Puxam lustro ao ego sedento de protagonismo. Há que não esquecer: personalidades lustrosas têm um projecto de vida, deixar o seu nome marcado na história colectiva. Que nem seja pelos piores motivos, ainda que convencidos estejam que legam um contributo inestimável. Na hora de fazer balanços, olham para os lados, para cima, para baixo. Nunca para o seu umbigo, que esse passa ao lado da culpa, coitada, destinada a morrer solteira.
Há dias, notícias de mais intromissões desnecessárias do governo e dos seus acólitos – os burocratas bem pensantes habituados a mal agir: uma comissão para apreciar a qualidade dos manuais escolares. Os manuais que falharem no crivo das eminências pardas arregimentadas à volta de uma mesa onde flutua uma carregada nuvem de nicotina (correcção: jamais será possível retratar estas reuniões com o ambiente carregado de maços de tabaco avidamente sorvidos pelos dedicados funcionários; até isso será proibido), os que falharem na avaliação ficam condenados a vegetar nas prateleiras esquecidas de uma qualquer biblioteca. Não terão o condão de sobrecarregar as mochilas dos alunos.
O defeito será meu, incréu das virtudes de sábias intervenções de almas caridosas que colocam ao serviço da comunidade o seu elevado saber. O defeito será meu, que continuo na ingénua confiança nas virtudes do mercado. Não percebo o afã interventor deste governo. Mexe por tudo e por nada, mexe em tudo o que se mexa. Sem compreender que às vezes a melhor maneira de agir é a omissão, deixar aos agentes que interagem no mercado a definição, livre e voluntária, das condições de funcionamento do mercado. O princípio aplica-se ao mercado dos manuais escolares. Porque hão-de iluminados burocratas do ministério da educação sobrepor-se ao conhecimento dos professores? Haverá aqui uma manifestação de desconfiança dos burocratas do ministério em relação aos seus pares, aos comuns professores que ensinam nas escolas?
Gosto de acreditar que não sou dado a teorias conspirativas. E, no entanto, desconfio desta absurda ideia do governo. Que ninguém se admire se, anos mais tarde, alguns dos pedantes burocratas que aprovam manuais escolares começarem a exibir súbitos e inesperados sinais exteriores de riqueza. Dando de barato que esta gente não consegue angariar a riqueza por via de herança, ou que a abastança não lhes chega através de um seis no totoloto, é fácil adivinhar a origem do enriquecimento. Põem-se mesmo a jeito dos dinheiros sujos que as editoras se predispõem a passar debaixo da mesa, para pagar os favores dos censores de serviço. Está estudado: as decisões dos governantes são influenciadas pelos burocratas, que afinal têm um interesse directo nelas. Locupletamento, numa só palavra.
Como ontem, o segundo acto da peça invoca reminiscências de esquecível Estado Novo. Uma comissão de avaliação dos manuais escolares, o estigma dos censores. Que agora não actuam na comunicação social nem estão munidos de lápis azul. Como ontem, ecos do Estado Novo que ressoam nesta governação de maioria absoluta cor-de-rosa. Nada que não fosse de esperar. É a diferença entre o exercício do poder e o abuso do poder. Tantos anos estiveram os socialistas à espera de uma maioria absoluta, que agora aproveitam a ocasião enquanto podem. Talvez por desconfiarem, no seu íntimo, que tão cedo não repetem o resultado que lhes foi oferecido por um erro de casting chamado Santana Lopes.
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